Novo álbum, estreia no Festival Med e a homenagem que se tornou caminho: falámos com Ceuzany Pires

June 19, 2025
Ceuzany Pires entrevista
DR

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Ceuzany Pires nasceu em Dakar, no Senegal, em 1990, mas foi em São Vicente que cresceu e se formou como artista. Filha de pai natural da ilha do Fogo e de mãe com origens de São Vicente e Santo Antão, cresceu imersa numa teia de referências culturais cabo-verdianas que considera a base da sua identidade musical. A avó, figura carismática e voz marcante dentro de casa, foi quem lhe despertou a paixão pela música, num ambiente onde o canto convivia com a vida quotidiana. “Eu ouvi a minha avó em casa cantar, fazia serenata com os amigos, vendia comida, vendia grogue em casa e acho que foi aí que eu fiquei com a paixão pela música”, recorda, sublinhando que foi essa vivência que a guiou até aos palcos.

Aos doze anos, teve a sua primeira experiência pública ao participar no concurso da Fundação Infância Feliz, uma iniciativa que reunia jovens talentos musicais de todo o arquipélago. Vencer o concurso foi o empurrão que precisava para não mais sair do mundo da música. Depois disso, passou a atuar regularmente em hotéis nas ilhas de São Vicente e Santo Antão, onde ganharia segurança de palco e visibilidade local. Foi precisamente numa dessas atuações, em Porto Novo, que teve o encontro determinante com o grupo Cordas do Sol. Arlindo Évora, autor e compositor do coletivo, viu-a em palco e convidou-a para integrar o grupo. “Ele disse que estava à procura de uma voz feminina para gravar e integrar o nosso grupo. Eu fiquei tão espantada, tão surpresa… Gravei com eles e a música ‘Mnine de Rua’ fez um sucesso”.

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A ligação com os Cordas do Sol viria a durar cerca de 15 anos. Durante esse período, Ceuzany não só solidificou a presença no panorama musical de Cabo Verde, como também conquistou espaço internacional. A experiência foi, nas suas palavras, formadora e transformadora: “Conheci vários lugares, conheci várias pessoas, outras culturas. Foi uma experiência única. É uma família para mim”. Ainda que a relação com o grupo se mantenha viva, Ceuzany sentiu a necessidade de seguir um caminho próprio. Assim nasceu a carreira a solo, pautada por um regresso consciente às raízes e por uma vontade de afirmar-se como uma voz singular no universo da música tradicional cabo-verdiana.

Assumidamente ligada à morna, à coladeira, ao funaná e ao batuque, a cantora defende a importância de preservar o legado musical das gerações anteriores. “É uma grande responsabilidade. Mas eu gosto e vou continuar assim”. Para além da responsabilidade artística, há um vínculo emocional profundo com a memória da avó, que nunca teve oportunidade de cantar profissionalmente. “No tempo dela, os pais não queriam que ela continuasse a cantar ou ser famosa. Eu carreguei esse grande orgulho: representar a minha avó só em músicas tradicionais”.

Ceuzany Pires entrevista

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Mas Ceuzany não ignora as possibilidades de fusão e renovação estética. Embora mantenha o foco na tradição, reconhece que a experimentação poderá ser um caminho futuro. “Seria ótimo fazer uma mistura, mas se calhar mais tarde. Neste momento, estou a gravar outro álbum e vou continuar na minha música tradicional”.

Para além da preservação da herança musical cabo-verdiana, afirma-se também como uma artista atenta às realidades sociais do seu tempo. A canção “Pedra Rum” é um exemplo claro desse posicionamento. A música aborda de forma direta e emotiva o impacto da droga conhecida localmente como “pedra” no quotidiano da juventude cabo-verdiana, sobretudo na ilha de São Vicente. A escolha do tema revela uma vontade clara de usar a música como veículo de alerta e de intervenção. “Hoje em dia muitos jovens estão a usar essa droga que é uma porcaria. É muito triste e complicado ver amigos mais próximos a meterem-se nisso”, lamenta. Ao assumir esta responsabilidade, Ceuzany posiciona-se não apenas como intérprete, mas como agente de consciência coletiva, que reconhece na sua visibilidade uma oportunidade de lançar o debate e abrir espaço para a reflexão. “Sinto essa responsabilidade”.

A repercussão do seu trabalho chegaria, pouco tempo depois, a outras geografias. No final de 2022, o cantor francês Christophe Maé descobriu a sua voz num mix que incluía temas de Cesária Évora e ficou imediatamente cativado. Decidiu viajar até São Vicente para a conhecer e gravar com ela presencialmente. “Fomos para a Praia, gravámos o videoclipe. Foi uma experiência inesquecível. Com ele, conheci França inteira”, recorda Ceuzany. Dessa colaboração nasceu o tema “Pays des merveilles”, lançado a 24 de novembro de 2022 e incluído no álbum C’est drôle la vie, editado em março de 2023. O projeto resultou também numa digressão por várias cidades francesas, com passagens por salas emblemáticas e programas televisivos, incluindo o popular Star Academy. Para Ceuzany, esta abertura internacional consolidou a sua presença nos palcos europeus, como reforçou o alcance da música tradicional cabo-verdiana junto de novos públicos.

“Eu sou acarinhada na minha terra e fora também"

Ceuzany Pires

Ao longo da sua trajetória, a artista tem contado com o apoio de figuras determinantes na cena musical cabo-verdiana, entre as quais destaca José da Silva, também conhecido como Djo da Silva, produtor e manager com forte ligação à carreira de Cesária Évora e responsável por abrir portas a várias gerações de artistas. Para Ceuzany, a importância do produtor no cenário cabo-verdiano é indiscutível: “O José da Silva é o melhor que temos em Cabo Verde. É um grande manager, uma grande pessoa”. Reconhece nele não apenas um agente do próprio percurso, mas um verdadeiro pilar da cultura musical do país. “Para mim, todos os artistas que querem começar no mundo da música em Cabo Verde deviam entrar em contacto com o Zé. Ele sabe tudo. É o nosso rei da música”.

Apesar do carinho que sente pelo público cabo-verdiano, Ceuzany reconhece que, por vezes, o reconhecimento local é menor do que aquele que recebe fora do país. “Eu sou acarinhada na minha terra e fora também. Mas acho que fora tem-se mais consideração com os artistas”. Ainda assim, evita generalizações e reconhece o trabalho feito ao longo dos anos na valorização da cultura, citando a título de exemplo os Cabo Verde Music Awards, cerimónia na qual também já atuou, como um passo importante para o reconhecimento interno: “foi um evento muito especial, para promover os artistas, reconhecer as nossas músicas. Muito bom”.

A forma como conjuga a valorização do património musical com a renovação do repertório fica evidente nas canções que compõe, interpreta e escolhe gravar. Entre as mais simbólicas, destaca-se “Mindel d’Novas”, com letra do artista Ary Duarte, um tema que presta homenagem à cidade que a viu crescer. “É um hino. Uma dedicatória para a nossa ilha”, afirma, acrescentando que assume a ilha de São Vicente como matriz afetiva e cultural, e projeta essa pertença com orgulho e sensibilidade.

O novo álbum, atualmente em fase de finalização, dá continuidade a esse caminho de afirmação identitária. Composto por dez faixas, deverá ser lançado antes do verão de 2025. É, segundo a própria, um trabalho que resulta de dedicação prolongada e de uma escuta atenta ao que a tradição tem ainda para dizer. “Já fiz todas as fotos. Agora falta só escolher a foto da capa.”

Entre os compromissos futuros, destaca-se a sua participação no Festival Med, que decorre entre os dias 26 e 28 de junho em Loulé, onde atuará a solo no concerto de abertura do evento, a 25 de junho, e com a Orquestra Cesária Évora. O convite, que recebeu com surpresa e emoção, simboliza a consolidação do seu percurso. “Fiquei toda contente quando o José da Silva me disse que eu iria participar. Ainda por cima para fazer a abertura. Nem tenho palavras para explicar como me sinto”.

Já no final da conversa, e em jeito de conclusão, deixa uma mensagem de força e perseverança à menina de 12 anos que começou a cantar num concurso infantil: “Obrigada, Ceuzany, por não desistires da música”, mensagem que dirige também aos jovens artistas cabo-verdianos que, como ela, querem fazer da música o seu caminho. E talvez seja precisamente aí que reside a força do seu percurso: numa fidelidade teimosa ao que lhe foi transmitido e na convicção de que a música pode ser tanto herança como caminho. 

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