“Já não temos as correntes nos pulsos e daqui para a frente depende de nós”, Cláudio Tibunga

June 22, 2025

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Cláudio “Tibunga” Gonçalves construiu uma carreira internacional de sucesso como modelo, tendo desfilado para marcas como Gucci, Prada, Hermès, Louis Vuitton e Dolce & Gabbana, depois de o seu perfil ter despertado a atenção a “caça-talentos” num centro comercial na Amadora. Apesar do prestígio alcançado nas passarelas de Paris, Milão ou Nova Iorque, Cláudio continua a afirmar-se como uma figura crítica do presente, profundamente envolvida com o contexto social de onde partiu, assumindo uma leitura clara sobre as fragilidades da sua comunidade e defendendo um modelo de transformação que começa pela educação, passa pela responsabilidade parental e chega à política como ferramenta prática de mudança.


A carreira no mundo da moda não apagou as marcas de uma infância atravessada por instabilidade. Crescido entre bairros como a Cova da Moura e Zambujal, Cláudio viveu, desde cedo, experiências limite, incluindo períodos de rua e ausência de estrutura familiar. A entrada num colégio interno, após intervenção da sua professora primária, foi um ponto de viragem. Mas, ao contrário de um corte com as origens, este episódio marcou o início de um percurso que manteve sempre a memória da comunidade como eixo de ação. A moda, embora lhe tenha dado projeção, nunca o distanciou do essencial: a responsabilidade de retribuir.


Ao revisitar o seu passado, o modelo recusa qualquer ideia de correção retrospetiva ou romantização do que foi difícil, e afirma que o processo de construção pessoal depende de todas as peças, independentemente do seu valor à primeira vista. “Eu sou aquilo que sou hoje por tudo o que passei na minha vida. Experiências boas e más. E acho que se eu tirasse parte dessas peças, não teria um puzzle perfeito.” Para Cláudio, o que se viveu não é matéria a apagar, mas sim a incorporar de forma crítica. Essa posição estende-se à forma como entende o papel das novas gerações, que, segundo ele, já não enfrentam as mesmas limitações estruturais do passado e, por isso, devem agir com mais consciência da sua capacidade de intervenção. “Já não precisamos assim tanto dos outros como nós pensamos. Já não temos as correntes nos pulsos e daqui para a frente depende de nós.”

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claudio tibunga entrevista

Fotos © BANTUMEN 2025

Ao recusar um olhar passivo sobre o presente, Cláudio realça que a atual geração dispõe de ferramentas e meios que exigem uma postura diferente - mais autónoma, mais determinada, menos dependente de estruturas externas. Quando recorda episódios de violência policial a que foi sujeito, destaca não a gravidade em si, mas a diferença de contexto: “Antigamente, já levei porrada na rua da polícia. Quem é que fez alguma coisa sobre isso? Ninguém soube.” Hoje, com a presença constante de câmeras, redes sociais e canais de denúncia, acredita que é possível exercer pressão pública real. Essa consciência impõe, para si, uma exigência renovada: já não basta reconhecer o que falha, é preciso mobilizar os recursos ao dispor para interferir nas condições em que os jovens vivem.


Esse sentido de urgência prolonga-se na forma como Cláudio entende a relação entre estrutura comunitária e capacidade de ação. A seu ver, as ferramentas existem, os meios estão acessíveis, mas continuam a falhar a articulação e a coesão. A possibilidade de agir de forma coordenada depende menos da quantidade de plataformas disponíveis e mais da solidez das relações internas. “Se houver uma coesão da nossa população, há uma voz e há uma forma de fazer mudar as coisas. Temos os meios todos.”


O mundo profissional onde se move permite-lhe perceber com nitidez o impacto da globalização nas trajetórias pessoais. Reconhece que vivemos num tempo em que é possível trabalhar a partir de qualquer ponto do mundo, vender produtos para qualquer mercado e colaborar com estruturas transnacionais sem sair de casa. Contudo, alerta que essa liberdade técnica não substitui a necessidade de preparação. “Estamos num mundo que não tem código postal. Tu agora podes estar em qualquer sítio a trabalhar para qualquer empresa, vender um produto a qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo.” Ao mesmo tempo que celebra esta abertura, reforça que o acesso, por si só, não garante emancipação e que as mesmas ferramentas que empoderam também distraem, se não forem bem utilizadas.


A ambiguidade que aponta reflete uma preocupação central no seu discurso: o risco de confundir potencial com realidade. Reconhece que há hoje mais ferramentas, mais acessos e mais possibilidades, mas isso não significa que essas oportunidades estejam a ser aproveitadas de forma consciente. Para ele, a ausência de orientação pode transformar meios de progresso em instrumentos de dispersão. “Há muitas ferramentas que os putos têm agora que nós não tínhamos na nossa época. Mas também há muitas distrações. E essas mesmas ferramentas podem ser a solução para o sucesso ou o fracasso. Depende de ti como formador, como pai, como pessoa, instruir a próxima geração e ensiná-los a tomar as decisões certas para eles usarem as ferramentas que têm ao seu dispor para o melhor. Tens que saber limitar.”

Como é que tu vais criar um líder se tu próprio não és?

Cláudio Tibunga

É neste ponto que a sua crítica à ausência de acompanhamento parental ganha força. Acredita que o primeiro espaço de falência coletiva começa na educação doméstica, que considera negligenciada por muitos pais que se demitem do seu papel formador. “Como é que tu vais criar um líder se tu próprio não és?” Defende que a presença dos pais na vida escolar dos filhos, o incentivo ao estudo e o acompanhamento ativo são elementos indispensáveis para contrariar os ciclos de exclusão. Lamenta, com franqueza, que o tempo dedicado ao consumo seja muitas vezes superior ao tempo investido na estruturação familiar. “O café do meu bairro está sempre cheio. O consumismo está a destruir a nossa população.”


O diagnóstico da situação familiar e escolar nas comunidades racializadas em Portugal é simultaneamente crítico e pragmático. Ao invés de recorrer a explicações exclusivamente externas, identifica padrões internos que impedem a ascensão coletiva, numa análise que recusa paternalismos e exige autocrítica. Mais do que apontar culpados, Cláudio insiste em apontar caminhos. E o primeiro desses caminhos passa por devolver à educação o papel central que ela perdeu em muitos contextos familiares.


Ainda que tenha promovido várias ações imediatas, como a oferta anual de material escolar em bairros sociais, admite que essas respostas pontuais não resolvem os problemas de fundo. “Estou a tapar um buraco. [...] Eu quero que os miúdos tenham hábitos de estudo. Eu quero ver pais negros nas reuniões da escola.” Esta ausência de representação parental é, para Cláudio, um sinal claro de um problema estrutural que não pode ser justificado apenas pelas condições económicas. A seu ver, trata-se também de uma questão de prioridades e de consciência cívica.


Ao centrar o discurso no compromisso com os mais novos, estabelece um eixo onde a continuidade da luta não está apenas na denúncia, mas na formação. Mais do que resistir ao presente, é preciso preparar o futuro. O abandono da juventude, seja por negligência ou por cansaço, representa, para ele, a interrupção de um ciclo de progresso que tantos ainda não iniciaram.


Com essa mesma coerência, recusa também o excesso de atenção mediática dada à extrema-direita. Para o modelo, centrar o discurso nos adversários serve apenas para desviar o foco das prioridades internas. “Este foco e esta importância que lhes estamos a dar é que nos está a desviar dos nossos próprios objetivos.” Ao invés de seguir essa rota, prefere concentrar-se na construção de soluções, nomeadamente através da participação política. “Vota, mano. Vai lá. Exerce o teu direito”, afirma, acrescentando que não se trata de protestar contra o discurso alheio, mas sim de defende a ocupação ativa dos espaços de decisão.


É partindo dessa lógica de ação que analisa o papel económico das comunidades imigrantes em Portugal. Enquanto alguns grupos, como os asiáticos, têm criado redes de negócio consistentes, com presença efetiva no espaço público, Tibunga considera que a comunidade PALOP ainda não conseguiu essa afirmação. “Diz-me um cabo-verdiano que abriu uma loja impactante em Lisboa?”, indaga. A ausência de estrutura económica visível não significa falta de talento ou ambição, mas antes revela a inexistência de redes de cooperação, de capital acumulado e de estratégias de longo prazo. Sugere que a comunidade deve passar de uma lógica de sobrevivência para uma lógica de criação. E essa criação passa por assumir riscos, definir prioridades e abandonar a espera por validação externa.


Apesar de ter alcançado reconhecimento global, Cláudio mantém um envolvimento ativo com o território de onde partiu. Coordena, com Nuno Varela, o projeto Kriativu, em Chelas, um espaço de formação em áreas criativas - como fotografia, música e design -  dirigido a jovens de contextos sociais desfavorecidos. Acredita que o acesso ao mundo criativo pode abrir horizontes concretos e produzir alternativas reais ao ciclo de exclusão, num registo onde o compromisso passa pela criação de referências próximas, acessíveis e consistentes.


É no equilíbrio entre carreira internacional e atuação local que reside a força da sua proposta e assume que não é preciso escolher entre o sucesso pessoal e o compromisso coletivo. Pelo contrário, acredita que é da articulação entre os dois que pode nascer uma nova geração com mais ferramentas, mais consciência e mais condições para romper os ciclos de exclusão.


A fechar, propõe que se incluam, no debate público, perfis frequentemente ignorados, como jovens miscigenados nascidos em Portugal, filhos de pais africanos, que não se reconhecem nem na identidade negra dominante, nem na branca. Refere ainda a importância de ouvir os mais velhos, que migraram nas décadas de 60 e 70, e que podem ajudar a contextualizar as mudanças entretanto ocorridas. “Nós estamos numa posição bem melhor do que estávamos antes.”


A narrativa que Cláudio Tibunga constrói, entre a moda internacional e o trabalho local, entre a crítica social e a ação comunitária, é atravessada por uma ideia simples e persistente: a responsabilidade começa em casa, prolonga-se no coletivo e exige foco, consistência e presença. Ao recusar o papel de símbolo decorativo, assume-se como elo entre mundos e gerações, e lembra que o caminho só se constrói com passos conscientes. “Foca no teu path [caminho], foca.”

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