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Se fizermos uma pesquisa rápida no Google pela palavra “mulato” ou “mulata”, a primeira definição que surge parece inofensiva: “pessoa de ascendência mista, especificamente descendente de brancos e negros”. Mas a questão é bem mais profunda do que isso.
Nos últimos dias circulou um vídeo nas redes sociais de uma jovem negra, de pele mais clara, a dizer que “as mulatas não vão chegar para todos” e que, por isso, alguns teriam de se “contentar” com as mulheres negras de pele mais escura. A frase, carregada de preconceito, abriu de imediato um debate sobre colorismo. Mas antes de entrar nesse ponto, quero falar do fascínio que se construiu em torno das pessoas de pele mais clara.
É compreensível que, muitas vezes, pessoas mestiças, filhos de pais negros e brancos, ou de tons de pele distintos, tenham dificuldade em encontrar o seu lugar. Surge a dúvida: são, ou podem considerar-se, pessoas negras? Quando nasce esta dúvida?
Historicamente, sabemos ou devíamos saber, que a etimologia de “mulato” está enraizada no período colonial e ligada ao sistema escravocrata. A hipótese mais comum aponta para a derivação de “mula”, animal híbrido nascido do cruzamento entre cavalo e burro, usada de forma pejorativa para designar descendentes de europeus e africanos. Outra hipótese remete ao árabe “muwallad”, usado na Península Ibérica para filhos de uniões mistas, mais tarde apropriado e transformado em “mulato”.
“O termo 'mulato' não deve ser visto como designação neutra, mas como linguagem que alimentou ideologias raciais”
Wilds Gomes
© Olson Ferreira
© Olson Ferreira
Durante a expansão colonial e o tráfico de africanos escravizados, a palavra tornou-se uma categoria racial. Nos territórios coloniais portugueses e espanhóis, “mulato” designava filhos de pessoas africanas escravizadas com colonizadores europeus. Era uma lógica de castas raciais que hierarquizava indivíduos pela cor da pele e pela proximidade à brancura, definindo privilégios, direitos e restrições.
Por isso, o termo carrega uma herança de desumanização e de comparação com animais, revelando a violência das estruturas coloniais. Hoje é considerado racista e ofensivo, por estar ligado a esse passado de exclusão. Não deve ser visto como designação neutra, mas como linguagem que alimentou ideologias raciais.
No Brasil, o termo surgiu no período colonial como parte de um sistema de classificação que sustentava a escravidão. Apareceu na literatura, como no romance "O Mulato" (1881), de Aluísio Azevedo, e em expressões culturais, muitas vezes marcado pela exotização. Hoje, é rejeitado por remeter à escravidão e à animalização, embora ainda haja quem o use de forma hierárquica, como se fosse uma distinção superior em relação a quem tem pele mais escura.
E é aqui que está o problema: o fascínio pela pele clara e o perigo que isso representa para a nossa comunidade.
O termo “colorismo” foi usado em 1982 pela escritora Alice Walker, no livro If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like? e é definido como a diferença de tratamento entre pessoas negras, baseada apenas na tonalidade da pele. Tal como o racismo, funciona de forma estrutural, e não depende apenas de intenções individuais. Cria-se uma pigmentocracia: quanto mais escura a pele, menos acessos, mais barreiras e mais formas de racismo.
Mas não podemos confundir colorismo com racismo. Ambos estão relacionados, mas não são idênticos. O racismo discrimina com base numa ideia de hierarquia entre raças; o colorismo age dentro do próprio grupo negro, destacando as nuances de pele para perpetuar desigualdades.
“A identidade não é só uma escolha: ela é determinada pela forma como a sociedade nos vê. Uma pessoa pode sentir-se negra, mas se é lida socialmente como branca, não enfrentará o mesmo racismo que alguém de pele escura”
Wilds Gomes
É por isso que o termo “negro” vai além de uma cor de pele e tornou-se uma categoria política e social que inclui pretos, pardos e também os chamados mulatos. Essa resposta nasceu da necessidade de enfrentar a fragmentação criada pelo colonialismo, que multiplicou categorias como “preto”, “mulato”, “pardo” ou “cafuzo” apenas para dividir e controlar.
No Brasil, essa divisão foi muito forte, mas os movimentos negros consolidaram a noção de que todos aqueles que sofrem discriminação por não serem reconhecidos como brancos fazem parte da população negra. O IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - acabou por oficializar essa visão ao definir “negros” como a soma de pretos e pardos, reforçando a ideia de unidade.
Em países africanos colonizados por Portugal, como Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe ou Moçambique, o termo “mulato” também foi usado para criar distinções sociais, ligadas à suposta proximidade à brancura. Ainda assim, essas pessoas partilhavam da mesma condição de subalternidade, sempre marcadas pelo colonialismo. Hoje, no discurso identitário e antirracista, “mulato” deixou de ser categoria válida: quem assim foi classificado é reconhecido como parte da comunidade negra.
A identidade negra não é apenas biológica ou fenotípica: é também cultural, social e política. É um lugar de pertença, de consciência e de vivência. Alguém pode afirmar-se negro pela cultura em que cresce, pelas referências que carrega, pela forma como participa de uma comunidade que partilha memórias e resistências. Mas também é verdade que a identidade não é só uma escolha: ela é determinada pela forma como a sociedade nos vê. Uma pessoa pode sentir-se negra, mas se é lida socialmente como branca, não enfrentará o mesmo racismo que alguém de pele escura.
Em resumo: a identidade negra é coletiva, construída na luta contra o racismo e contra as divisões internas. O colorismo é real, mas não pode ser usado como arma de separação. Ele deve ser entendido como parte do racismo estrutural, e não como justificativa para criar novas hierarquias. O que menos podemos fazer é reproduzir essa lógica, porque a unidade é e sempre será a nossa maior força.
Eu, pai, homem negro, com filhos de pele mais clara do que a minha, já fui questionado se a mãe deles era branca. A pergunta surge apenas porque temos cores diferentes, porque eles são “bonitos” e porque têm caracóis no cabelo. Sendo filhos de um pai e de uma mãe negros, a dúvida revela o quanto esses elogios são camuflados de preconceito e de ignorância. Portanto, não se trata de um episódio isolado, mas de mais um reflexo de como o fascínio pela pele clara continua a alimentar desigualdades.
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