Priorizar a criatividade na instabilidade: uma nova realidade para Moçambique

July 16, 2025
criatividade na instabilidad Moçambique

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Num momento em que existe desconforto na rua, como é que se cria dentro de portas? Os distúrbios e a instabilidade política que marcaram Moçambique no último ano não produziram efeitos isolados, tendo desencadeado um clima de incerteza que se instalou logo após as eleições gerais de 9 de outubro. Durante vários meses, os protestos e as tensões mantiveram-se na rua, com repercussões que se estenderam até março de 2025 e afetaram a população moçambicana em diversas frentes.

Com vários setores impactados, que espaço resta para os criativos moçambicanos? Falámos com Márcia Sele, Melchior Ferreira e João Pereira, três diretores criativos, para compreender de que forma o contexto atual influencia o trabalho desenvolvido nos últimos meses, os principais desafios sentidos e o modo como têm procurado responder-lhes.

Para Márcia Sele, a força da palavra "resiliência" não se ficou pelas ruas. A Fundadora e Designer Criativa da Jakriei sublinha que a criatividade exige tanto do lado racional como do emocional, ambos abalados no presente contexto. “Vemos criativos frustrados e oportunidades cortadas porque deixaram de ter condições para estudar ou trabalhar”, afirma. Ainda assim, reconhece que há quem veja a crise como uma alavanca para inovar ou adaptar-se. A seu ver, quem tem verdadeira vontade de trabalhar na área encontrará formas de fazê-lo, mesmo com sacrifícios. Um exemplo que aponta é a questão da formação, onde “os pagamentos online foram reduzidos, então as subscrições que dão acesso a ferramentas e softwares tornaram-se mais difíceis de aceder. A internet, por vezes, tem limitações e é uma ferramenta crucial para pesquisa e execução no campo criativo.” Ainda assim, acredita que quem acompanha as tendências e investe em aprendizagem contínua poderá encontrar formas de manter-se ativo, apontando a inteligência artificial como um dos instrumentos que têm vindo a automatizar partes do processo criativo.

Apesar de reconhecer que o mercado já ofereceu mais oportunidades a designers em Moçambique, Márcia prefere focar-se na solução. Revela estar a trabalhar em propostas que respondam às necessidades do setor, nomeadamente através da criação de uma associação. “Por enquanto temos um grupo de WhatsApp onde todos os criativos moçambicanos podem partilhar e debater o mundo do design. A ideia é desenvolver mais do que isso, mas ainda estamos no processo de legalizar a associação. Finalmente encontrámos alguém de boa fé para nos guiar”, afirma.

Melchior Ferreira, uma das mentes por detrás do sucesso das campanhas da cerveja 2M, é um criativo multidisciplinar que transita entre a música, o design e, mais recentemente, a realização. Ao refletir sobre os últimos tempos em Moçambique, o realizador de “Vândalos” salienta sobretudo a aceleração dos ritmos de produção criativa. “Hoje em dia está tudo muito mais rápido. Antes ainda havia tempo para pensar bem numa campanha, fazer um plano anual, estruturar tudo com calma. Sinto que a pressão aumentou. Já não basta comunicar bem, tem de se destacar, tem de se sentir especial.” Com esse ritmo, reconhece que também ele e a sua equipa tiveram de se adaptar e que “já não dá para ficar só naquele registo tradicional. Temos de estar ligados ao que está a acontecer no país, na cultura pop, no TikTok, onde for. Se não, perdemos o timing.”

Se o setor se tornou mais exigente, também acabou por ficar mais sensível e Melchior admite que há temas evitados deliberadamente por receio das repercussões. “Há pessoas com quem às vezes queríamos trabalhar mas não dá, porque temos receio. No nosso mercado, onde tudo está meio ligado, isso sente-se muito. E trava um bocado.” Acrescenta que, em consequência, os criadores mais engajados, com opiniões fortes e ligação a causas, começam a ser vistos como “arriscados”. E isso, considera, é contraproducente para o processo criativo porque “no fim do dia, a criatividade precisa de liberdade. E quando tu começas a pensar mais no que não podes dizer do que no que podes criar, já estás limitado.” Ainda assim, acredita que é possível encontrar formas de contornar o contexto, nomeadamente através do uso de simbolismo e subtileza, “mas não é igual.”

Já João Pereira, designer e tatuador a viver em Moçambique há mais de uma década, relata que, embora os acontecimentos do final de 2024 tenham tido impacto no seu quotidiano, esse efeito foi sobretudo indireto. Com um percurso feito em diversos ambientes criativos e campanhas integradas, explica que teve a sorte de trabalhar com marcas de grande dimensão, menos expostas às medidas mais restritivas. “Os setores de bebidas e banca foram dos poucos onde continuámos a trabalhar”, afirma.

Mesmo assim, admite que a expectativa face ao presente e ao futuro das marcas foi uma realidade partilhada. “Naturalmente, todas as marcas com que trabalhamos sofreram direta ou indiretamente com o que aconteceu, e todas ficaram durante algum tempo na expectativa das repercussões.” Durante esse período, houve, no entanto, necessidade de regressar a um regime normal, tanto em termos de investimento como de carga de trabalho. “Neste momento, não podemos dizer que diretamente sentimos esse dano. Continuamos a trabalhar a todo o vapor com cada uma das marcas, e até com algumas novas, portanto creio que tudo, pelo menos na nossa área, tende a voltar ao normal.”

A instabilidade vivida levou-o, ainda, a repensar aspetos do quotidiano, como o local onde vive ou a proximidade ao escritório. Questionado sobre um possível impacto mais acentuado no seu trabalho, considera que o setor criativo exige, por natureza, um processo constante de adaptação e reinvenção. “Felizmente, é uma área onde precisas de te recriar constantemente, pensar em várias versões e soluções para os desafios. Por isso, não creio que tenha sido afetado”, conclui.

Apesar das dificuldades, os indicadores recentes apontam para um mercado criativo em expansão, sobretudo nas áreas da publicidade e dos media digitais. De acordo com dados divulgados pela plataforma Statista, estima-se que o investimento publicitário em Moçambique atinja os 61 milhões de dólares em 2025, com a televisão e o vídeo a liderarem esse crescimento. No domínio digital, o investimento em publicidade terá sido superior a 24 milhões de euros em 2024, com destaque para o peso crescente da pesquisa paga e do marketing em redes sociais. O setor musical também mostra sinais de evolução, especialmente no consumo digital, com o streaming a representar mais de 80% da receita do segmento.

Embora enfrente limitações estruturais e tenha sido afetado pela instabilidade recente, o setor criativo em Moçambique tem mantido níveis relevantes de atividade, sobretudo nas áreas com maior incorporação digital. O crescimento do investimento em publicidade, a consolidação do consumo de música em plataformas de streaming e a continuidade de projetos em setores como bebidas, banca e media demonstram que, mesmo num contexto adverso, existe um núcleo profissional ativo, com capacidade de adaptação e resposta. O ambiente permanece exigente, mas os dados disponíveis mostram um setor criativo em evolução, com tendência para a consolidação digital.

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