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Não há muito tempo, o meu filho trouxe uma reinterpretação de um quadro que tinha feito na escola. Era “A noite estrelada”, de Van Gogh. Do alto da ingenuidade dos seus oito anos, perguntou-me “sabes quem é o pintor, mamã?”. Respondi “Van Gogh” e ele retrucou “como é que sabes?”. Na verdade, não sabia, mas assumi que não dá para falar de arte sem citar certos nomes, daí a resposta – que até podia estar errada – tão rápida. No fundo, e a bem da verdade, aquele momento fez-me questionar toda a minha relação com a arte e cheguei à conclusão que ela é, ou talvez tenha sido sempre, praticamente inexistente.
Sou o tipo de pessoa que aprecia o belo, mas é incapaz de defini-lo. Cada vez que olho para uma obra, sou capaz de ver beleza, mas sinto sempre, e bem, que não tenho conhecimento e olhar clínico que possam sustentar ou fundamentar qualquer tipo de opinião. É como se no meu cérebro existisse um vazio no que à arte diz respeito e isso obriga-me, inconsciente e invariavelmente, a reduzir-me à condição de espectadora muda sem capacidade de dialogar com o que vejo, deixando “para os meus botões” tudo aquilo que as obras possam despertar. Mas não será esse, em última instância, o papel da arte? Que outro propósito poderá ela ter que não fazer-nos pensar, questionar e entrar num imaginário, que tem tanto de distante quanto de próprio, fruto das nossas vivências e da matéria que habita no nosso subconsciente?
Não sei se por desinteresse ou por força das circunstâncias - o pouco contacto que tive com a arte foi em aulas de educação visual ou visitas de estudo -, mas sempre vi a arte como algo reservado a uma certa elite que, além do dinheiro, teria também o poder intelectual para avaliar, comentar e apreciar todos os detalhes que compõem uma obra. Em suma, achei durante muito tempo que os museus não eram para mim, nem para pessoas como eu. Os museus e galerias funcionavam como espaços onde se falava uma linguagem que eu não dominava, como se houvesse um código secreto de pertença do qual eu estava excluída e isso foi-me afastando.
A título profissional, fui convidada a visitar a exposição I Ate Civilization and It Poisoned Me, da Fundação Calouste Gulbenkian. É um projeto realizado em parceria com a Universidade Católica Portuguesa, onde os alunos do Mestrado em Estudos de Cultura assumem a parte criativa e curatorial, e apresenta 13 obras provenientes da coleção do CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian, selecionadas com o objetivo de refletir criticamente sobre a relação entre natureza, seres humanos e civilização nas suas três temporalidades (passado, presente e futuro). Assim que recebi o convite pensei “que raios vou lá fazer, se a arte não é para mim?”, mas despedi-me dos meus (pre)conceitos, vesti-me da curiosidade que alimenta o jornalismo e lá fui.
À chegada à Galeria Fundação Amélia de Mello, na sede da Universidade, fui recebida pela Elsa Damas, mestranda e uma das curadoras da exposição, e foi aí que se deu a virada de chave. Esperava encontrar um discurso académico distante, mas encontrei entusiasmo genuíno e vontade de comunicar. A Elsa recebeu-me com o brilho típico de quem gosta do que faz e acredita que o seu trabalho pode mudar o mundo. Recuei uns 10 anos naquele primeiro contacto e lembrei-me da Marisa, estudante de jornalismo cheia de sonhos e com um olhar apaixonado pela profissão. Vi espelhado o meu próprio entusiasmo de outros tempos e foi bom reencontrar-me, agora com 32 anos, naquela miúda - no sentido mais positivo da coisa – idealista, cheia de vontade partilhar o que melhor sabe fazer.
A visita foi sempre guiada num tom próximo e respeitoso, onde a Elsa teve a capacidade (extraordinária) de explicar os quadros sem nunca tentar condicionar aqueles que podiam ser os meus pensamentos. Parece fácil, mas é um exercício difícil se tivermos em conta o conhecimento que nos separa no que diz respeito à arte. Logo ao início da exposição, a obra de Jorge Queiroz, Untitled (2011), onde estava ilustrado um olho no canto superior direito, servia de prenúncio para o que viria a seguir: era preciso olhar para poder ver, e ver para poder reparar e, consequentemente, pensar. Foi exatamente o que aconteceu.
Parei depois na arte de Kiluanji Kia Henda, autodidata artista visual angolano. “Compacted Distance”, obra que ilustra um muro de cimento num cenário deserto, lembrou-me tudo aquilo que éramos [nós, africanos] antes da chegada do colonialismo. E fez-me colocar, em jeito de retrospetiva toda uma série de questões, ancoradas na minha condição de pessoa negra.
Quando foi que nos perdemos? E em que momento deixámos que nos impusessem um muro, feito de padrões, normas, línguas e pensamentos que não eram nossos? Se a terra, ainda que deserta, pode ser fértil para algo novo, como deixámos que esse deserto, tão próprio e tão nosso, nos fosse oferecido como oásis - vazio, vulnerável, tornado riqueza de quem nunca nos compreendeu? É curioso como a versão da história muda consoante quem a conta. Oprimidos e opressores nunca têm a mesma narrativa, mas acabam sempre por se encontrar algures na linha do tempo. Os recortes do muro assemelham-se à figura de um homem e de uma mulher. E basta olhar para a história para perceber que o homem africano sempre soube que a luta não se faz sem a mulher. Rainha Nzinga, em Angola, e Titina Silá, na Guiné-Bissau, são disso exemplo, mas ainda assim, e com o passar dos anos, foi persistindo a ideia do homem africano como figura machista, incapaz de amar, quando na verdade, talvez ele seja só produto de quem nunca lhe reconheceu dignidade. No fundo, e para mim, talvez aquele muro seja o espelho do que tantas sociedades africanas se tornaram hoje, terrenos férteis mal aproveitados. Reinos sem direção, terras de ninguém onde a possibilidade de escrever novas histórias se perde na imensidão de um vazio ideológico e pragmático, quase como o deserto que Kiluanji ilustra, mas com contornos não tão poéticos porque trata-se da vida real.
Já com os pensamentos a fervilhar, e finalmente a conseguir ver para lá dos quadros, dei de caras com uma fotografia de Mónica de Miranda. “Twins e Plateau” é, para mim, a obra com mais peso, apesar da simplicidade. O antigo Cinema Karl Marx, em Angola, é o pano de fundo de duas gémeas - que poderiam ser duas versões da mesma pessoa - equidistantes, cujos olhares parecem não se querer encontrar. É simbólico porque remete para a dificuldade que nós, africanos, temos, muitas vezes, em reconhecer o outro na nossa figura. Feitos da mesma matéria, iludidos pelos mesmos preconceitos e incapazes de agir, com propósito, em prol de um bem maior. Olhando para a fotografia, não admira que haja lugares vazios, espaços em decomposição simbólica. Quando falta união, nada resiste. Tal como as cadeiras do teatro, o pouco que sobra vai-se deteriorando com o tempo. A questão que fica é: quem ocupa o nosso lugar, quando nos demitimos da responsabilidade de cuidar daquilo que é nosso?
O Cinema Karl Marx era um ponto cultural da cidade, hoje deixado ao abandono. Pergunto como se pode escrever a história ou procurar novos caminhos ignorando a cultura, quando ela é, sempre foi, o motor silencioso de qualquer sociedade? Deixar espaços culturais esvaírem-se em si mesmos é matar todos os dias a semente de um futuro possível. E talvez seja esse o nosso erro: não entender que, tal como a história, a cultura também é feita de nomes e lugares. Aqueles bancos sujos, vazios, representam descaso e apatia, mais do que isso, deixam claro que quem não quer saber de cultura, não quer saber da emancipação do seu povo. E quem não quer saber da emancipação do seu povo, não lhe reconhece dignidade de discernir, de questionar porque isso afronta. O maior ato de cobardia que um homem pode cometer é encher-se do seu próprio ego a ponto de não reconhecer as suas falhas, achando-se suficiente o bastante para não precisar do outro.
“Abandonem todos os cinemas, todos os teatros! Fiquem calados e, de preferência, sem dar muito trabalho”, seria, talvez, a frase de quem, do alto do poder, escolheu a inércia. Não para servir o país, mas para usá-lo - da forma mais cruel que existe: pelo desprezo. Cá e lá, a cultura assemelha-se ao parente pobre da família que constitui o Governo. Abandoná-la é uma decisão, consciente e deliberada, de quem se acha no direito de decidir o que é melhor para o povo sem nunca ter parado para ouvi-lo.
Estas duas obras, em particular, fizeram-me ver a forma como a sociedade é, sempre foi, construída com base em contrariedades. Está tudo certo nisso: processos difíceis nunca seguem percursos lineares, mas é neles que reside a beleza daquilo que se consegue no final. Chegados à democracia, esse regime maravilhoso, cabe-nos entender que ele não é estanque, pelo contrário exige olhar e cuidado. Caso contrário, e tal como no cinema Karl Marx, as cadeiras vão-se esvaziando. E lugares vazios são, tal como o deserto de Kiluanji, terrenos férteis para o crescimento de movimentos que surgem com o propósito de atacar aquilo que à primeira vista se propõem defender.
Visitar a exposição, falar com a Elsa e ver tantas obras também me fez questionar o encontro entre arte e academia. Quando foi que estes mundos, tão complementares, se afastaram, sem saber que um empresta ao outro aquilo que precisa para se manter vivo? Ainda bem que a Universidade Católica e a Fundação Calouste Gulbenkian perceberam que têm ambos muito mais a ganhar quando se alia cultura, conhecimento e a paixão de pessoas como a Elsa.
Termino a exposição, e este texto, da mesma forma que comecei: a achar que não tenho olho treinado para a arte e que talvez nunca a vá entender como merece, embora me tenham surgido outras convicções. Uma delas é a certeza de que tudo aquilo que nos obriga a pensar merece tempo, espaço e valor. A arte é um mundo em si mesmo e já vem sendo tempo de lhe darmos o devido espaço e reconhecermos o seu valor - que diga-se de passagem é imensurável. Em suma, a civilização envenenou-nos mesmo. E talvez o mais trágico seja não sabermos onde encontrar o antídoto.
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