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O ilustrador cabo-verdiano Sai Rodrigues integra a exposição “Ecos da Memória”, patente de 5 a 15 de novembro na Casa do Comum, em Lisboa, no âmbito da 4.ª edição do MIA – Mês da Identidade Africana. A mostra, com curadoria de Ivanova Araújo, reúne artistas de diferentes geografias e linguagens que convocam a história como matéria viva, em permanente transformação e diálogo com o presente.
A presença de Rodrigues no evento reforça o compromisso do MIA com a criação contemporânea africana e afrodescendente, valorizando narrativas pessoais que refletem a herança cultural dos países de língua portuguesa. No caso do artista cabo-verdiano, essa herança é o eixo em torno do qual se constrói uma obra enraizada na memória e na pertença.
Nascido e criado em Cabo Verde, descreve a infância como o seu primeiro atelier. “Sempre gostei de ilustrações”, recorda, evocando o pai carpinteiro, que desenhava antes de iniciar qualquer trabalho. “Eu copiava, levava para a escola e todos ficavam maravilhados”, conta, lembrando um entusiasmo que viria a marcar toda a sua trajetória. O reconhecimento precoce, aliado ao apoio familiar, consolidou um hábito que nunca mais abandonou e que viria a moldar o seu percurso artístico.
“É necessário saber de onde vens para dar o próximo passo; a infância serviu de base e o meu percurso está refletido no que sou hoje”
Sai Rodrigues


Tímido e reservado, encontrou no desenho um refúgio e uma forma de comunicação. A arte tornou-se o seu espaço de expressão mais autêntico, onde as emoções e as histórias ganhavam forma. O ponto de viragem chegou quando um amigo recusou aceitar uma ilustração de oferta e insistiu em pagar-lhe. “Disse-me para usar o talento como forma de ganhar a vida; a partir dali comecei a colocar um preço nos trabalhos e a ganhar confiança”, recorda.
O seu trabalho constrói-se em torno da memória, da ancestralidade e da identidade. Cresceu numa zona periférica, em contacto com a terra, os mais velhos e as narrativas orais, e foi nesse contexto que compreendeu o valor da origem como base de tudo o que faz. “É necessário saber de onde vens para dar o próximo passo; a infância serviu de base e o meu percurso está refletido no que sou hoje”, afirma, sublinhando a importância da ligação ao passado como força criadora.
As suas referências visuais nasceram no universo da banda desenhada e do anime - de Dragon Ball à Marvel e à DC -, mas evoluíram com o tempo para uma linguagem mais intimista e identitária. “Com o tempo vim encontrar-me no desenho da minha terra; estas ilustrações preenchiam mais a alma, por isso dei prioridade à arte que representa Cabo Verde”, explica, referindo o processo de reencontro com as suas raízes.
Sem se prender a rótulos ou fronteiras, entende a criação como um exercício de liberdade. “O lugar do artista é onde se sente bem para se expressar, sem censura; o dever do artista é criar, não é lidar com o que os outros pensam.” Para o artista, o gesto artístico cumpre-se no instante em que a obra é concluída, “depois disso, ela pertence ao mundo.”
“O lugar do artista é onde se sente bem para se expressar, sem censura; o dever do artista é criar, não é lidar com o que os outros pensam”
Sai Rodrigues

Sai Rofrigues | DR
A seleção de peças que apresenta em “Ecos da Memória” reflete essa mesma filosofia. As obras resultam de um cruzamento entre vivências pessoais, introspeção e estímulos musicais. Nos últimos tempos, a música cabo-verdiana tem-se tornado um dos principais motores do seu processo criativo ao mesmo tempo que tem permitido exportar a cultura para fora do espectro do arquipélago. “Absorvo a música e faço uma ilustração baseada no contexto da letra”, explica, para justificar um processo que alia a escuta sensível à tradução visual da emoção.
O artista encara a criação como um campo espiritual e intuitivo e fala de um estado de “disponibilidade para receber o chamado”, onde a ancestralidade e a intuição caminham juntas. As ideias, diz, podem surgir num estado de vigília, num momento de meditação ou no próprio ato de desenhar, “quando a mão descobre o caminho antes da mente”.
A presença em Lisboa é, no fundo, uma extensão natural desse percurso e participar na exposição mais é sobre partilhar caminho do que sobre a exibição das obras . “Sou grato por fazer parte e por deixar mensagem através do que faço; do resto, é deixar a vida acontecer”, afirma, reconhecendo que cada criação é também um diálogo com o olhar do outro.
Para além do trabalho individual, Isaias Rodrigues, nome verdadeiro do artista, é fundador do projeto Polon CV, um movimento coletivo que promove o folclore cabo-verdiano e o liga à moda e à cultura contemporânea. Inspirado numa árvore emblemática de Cabo Verde, símbolo de resiliência e longevidade, o projeto defende a conservação da língua materna, o respeito pelas raízes e a valorização da criatividade local. “É uma forma de afirmar quem somos e de celebrar o que temos de mais nosso”, diz o artista, que vê na indumentária uma extensão natural da expressão cultural e do mesmo impulso que o guia no desenho. “O Polon nasce dessa necessidade de equilíbrio. A arte tem muito de individualismo - é o momento do silêncio, da concentração -, mas também precisa de partilha. É importante perceber quando devemos recolher e quando devemos estar disponíveis para o coletivo.”
Questionado sobre o que o move hoje, responde sem hesitar que as raízes continuam a ser o centro de tudo a que se propõe. “Cabo Verde, a nossa cultura e a música; enquanto houver música, sobretudo a tradicional, da minha parte vai haver arte.” E deixa um conselho aos mais jovens, que sintetiza o percurso que o trouxe até aqui: “É possível, com dedicação e clareza; coloca energia positiva no que queres e vais alcançar.”
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