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Realizador e investigador das narrativas afro-diaspóricas, Fábio Silva tem vindo a afirmar-se como uma das vozes do novo cinema português. Nascido em Portugal, o autor constrói a sua obra a partir do diálogo entre identidade, memória e arquivo pessoal. No próximo dia 7 de novembro de 2025, apresenta o projeto A Biblioteca Negra, integrado na programação do MIA - Mês da Identidade Africana, uma iniciativa da BANTUMEN que celebra as múltiplas expressões da identidade africana e afro-lusófona.
Em conversa com a BANTUMEN, Fábio explica que “A Biblioteca Negra” nasceu “enquanto uma página de Instagram e depois um site”, dedicado a livros “que me ajudaram a descobrir mais sobre mim, as minhas origens e a minha ancestralidade.” O projeto começou como uma simples base de dados literária em Excel e, com o tempo, evoluiu para um espaço digital e agora físico. “É super importante recorrer ao arquivo pessoal e coletivo para compreender não apenas a nossa identidade, mas também as feridas coloniais que ainda estão presentes”, afirma.
Filho de pais cabo-verdianos, cresceu “com histórias” de Cabo Verde. Visitou o país pela primeira vez aos dez anos e construiu, a partir dos relatos do pai, uma imagem marcada tanto pela dureza da pobreza como pela riqueza das memórias. Essa dualidade entre o “Portugal” em que nasceu e o “Cabo Verde” das origens atravessa tanto a sua obra cinematográfica como o projeto literário.
"A Biblioteca Negra nasce dessa necessidade de continuar a ler, investigar e criar a partir dessas descobertas"
Fábio Silva

©️ Alex Paganelli
Enquanto filho de cabo-verdianos em Portugal, como é que a tua experiência moldou a tua forma de olhar o mundo e o modo como contas as tuas histórias?
É uma ótima primeira pergunta. Sabes que Cabo Verde, para mim, sempre foi uma terra distante. Os meus pais são cabo-verdianos, mas só aos dez anos é que eu fui lá pela primeira vez. Eu cresci com histórias, sobretudo do lado do meu pai que me diziam que Cabo Verde era um país onde ele vivenciou muita pobreza. Foi uma terra de onde ele saiu e nunca mais voltou. Então, acabei por construir um imaginário sobre um lugar que achava que não era bom para se viver, por causa dessa visão do meu pai.
Durante muitos anos afastei-me desse lugar, mas felizmente fui conhecê-lo e descobri que é maravilhoso, é uma segunda casa. Gosto de tudo lá: a paisagem, a gastronomia, as pessoas. A minha mãe tem uma família muito vasta, e cada vez que vou descubro um novo familiar. Então, nos meus filmes, seja no último ou no próximo, abordo essa redescoberta: conhecer essa terra é também descobrir-me a mim próprio.
Como surgiu a ideia da Biblioteca Negra e qual foi o ponto de partida do projeto?
Nasceu do meu doutoramento, que aborda a representação das comunidades afrodescendentes no cinema português.
Comecei a reunir livros relacionados com esses temas, colonialismo, diáspora, identidade e percebi que podia partilhar isso. Criei uma página no Instagram e comecei a mostrar as leituras. Depois surgiu a ideia de criar um site, uma plataforma onde se podem descobrir livros, romances, livros infantis, e até doar livros para casas parceiras. Quero que seja um espaço vivo, de partilha e descoberta.
Por que motivo escolheste lançar a Biblioteca Negra durante o Mês da Identidade Africana?
Foi uma feliz coincidência. Quando falei com a Casa do Comum, disseram-me que haveria um evento ligado à Identidade Africana e perguntaram se eu queria participar. Fez todo o sentido. Parecia estar escrito. E fico muito feliz com essa parceria, admiro muito o trabalho da BANTUMEN.
"O presente, às vezes, não nos dá contexto para compreender o que vivemos. Quanto mais recuo, mais compreendo quem sou"
Fábio Silva
De que forma é que a Biblioteca Negra dialoga com o teu trabalho cinematográfico?
Cada vez mais. Nos meus filmes, percebo que o processo começa sempre na leitura. Ler, refletir e transformar a literatura é a base de tudo. A Biblioteca Negra nasce dessa necessidade de continuar a ler, investigar e criar a partir dessas descobertas.
Podes contar-nos qual foi o momento decisivo que te fez escolher o cinema documental como forma de expressão?
O meu primeiro filme chama-se Hip to da Hop, um documentário sobre essa cultura. Eu era muito novo e percebi que a câmara podia ser uma forma de me expressar e compreender o mundo. Quis fazer um bom documentário sobre hip hop, uma cultura que me deu muito, e era uma forma de retribuir. Depois explorei a ficção, fiz uma curta de sete minutos só para perceber se era capaz. Correu bem, mas voltei ao documental com O Fruto do Vosso Ventre, que nasceu como uma carta visual ao meu pai. O documental permitiu-me comunicar de forma mais direta e honesta. Hoje trabalho nos dois campos documental e ficcional. Estou a terminar Limbo, um episódio da série Novas Narrativas de Caça, que vai estrear na RTP em breve.
Porque é que o episódio se chama Limbo?
Porque é centrado nas minhas memórias. Exploro esse espaço dos afrodescendentes que vivem entre Portugal e a terra dos seus ancestrais. Durante a adolescência e o início da vida adulta senti que não era visto nem como português, nem como africano, um estado entre dois mundos, um limbo. O personagem do episódio vive isso, tal como eu vivi. No fundo, estou sempre nesse processo de descoberta sobre mim, a minha família, as feridas e as origens. O cinema documental, para mim, é um veículo para conhecer, refletir e transformar.
E como te sentes com esse impacto dentro da tua própria família?
Foi difícil, mas a terapia ajudou-me muito a compreender a dinâmica dos meus pais. Depois do filme ficamos um tempo sem falar, mas hoje já fizemos as pazes. O filme foi duro, mas libertador. Parecia que tinha de acontecer, estava escrito.
"O arquivo histórico ajuda-me a entender as feridas coloniais e as origens. O arquivo familiar ajuda-me a entender a minha própria família"
Fábio Silva
O arquivo pessoal e familiar surge de forma recorrente nos teus trabalhos. Porque é tão importante resgatar essas memórias e colocá-las no centro da narrativa?
Porque o presente, às vezes, não nos dá o contexto suficiente para compreender o que vivemos.
Gosto de história quanto mais recuo, mais compreendo quem sou e o que a sociedade é. O arquivo histórico ajuda-me a entender as feridas coloniais e as origens. O arquivo familiar, como o do meu pai, ajuda-me a entender a minha própria família. Tudo isso é sobre compreensão.
Há cenas ou momentos do teu processo criativo que mais te desafiaram emocionalmente?
Sim O Fruto do Vosso Ventre, sem dúvida. Ainda hoje me custa ver o filme. É muito íntimo, magoa. Foi feito num momento de raiva, como uma discussão que acaba por ser gravada e mostrada em público. As primeiras exibições foram dolorosas, pensei: “Isto não deve interessar a ninguém.” Mas com o tempo percebi que era importante. Hoje vejo com mais paz.
Sendo português e filho de imigrantes, a tua identidade torna-se híbrida. Como isso influencia a tua forma de contar histórias?
O Limbo é o melhor exemplo. Revisito episódios da minha vida que refletem essa questão de pertença não ser totalmente de um lado nem do outro. Crescemos a ouvir ideias preconcebidas: “ser negro é isto, ser português é aquilo”. Às vezes sentia-me fora dos dois mundos. Esse sentimento é algo que procuro sempre explorar no meu cinema.

©️ Alex Paganelli
No espaço digital do projeto, será possível aceder a listas de recomendações literárias, desde romances a livros infantis, e participar em iniciativas de doação de livros em parceria com o Espaço Bons & 67 Ponto Cultural e o Espaço Cavaleiro de São Brás. Ao longo da sua carreira, Fábio tem explorado temas de identidade, arquivo pessoal e memória coletiva. Nos seus filmes, o arquivo familiar especialmente o do pai assume um papel central na tentativa de compreender tanto a sua própria história como a da sociedade em que vive. A Biblioteca Negra nasce dessa pulsão criativa e é a extensão natural da prática artística e investigativa que atravessa o seu cinema.
O lançamento do projeto literário acontece num contexto de crescente valorização das vozes e memórias negras lusófonas, e reforça a importância da leitura como ato político e cultural. Para Fábio, “dar visibilidade às narrativas historicamente silenciadas”, mais do que resgatar histórias esquecidas, é criar lugares de pertencimento. “Quando compreendemos a história, é difícil continuar a reproduzir discursos de ignorância total”, sublinha.
A edição inaugural do evento, a 7 de novembro, é apenas o começo de um projeto que antecipa as futuras sessões em escolas, bibliotecas e eventos comunitários, com o objetivo de expandir o impacto da iniciativa.
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Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.
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