“Hoji nsta bom pa nhos”: falámos com Bino e assistimos ao concerto dos Ferro Gaita no Festival MED

June 27, 2025
ferro gaita concerto festival med
📸 Bino, vocalista e membro dos Ferro Gaita, fotografado por Djamir Afonso

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Já passava da meia noite quando os Ferro Gaita, um dos grupos mais respeitados da música cabo-verdiana, se apresentaram no Palco Matriz do Festival MED e trouxeram à cidade de Loulé a energia contagiante que há décadas os caracteriza. Com a bandeira de Cabo Verde a servir de pano de fundo, os músicos chegaram com camisolas que remetiam para as cores do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) - amarelo, vermelho e verde. A escolha, que pode ter sido casual, não deixa de ter também um significado político: alguns dos elementos do grupo, ainda em crianças, fizeram parte da Organização dos Pioneiros Abel Djassi e da Juventude Africana Amílcar Cabral, estruturas criadas no período pós-independência.

O concerto foi marcado por um alinhamento repleto de temas emblemáticos do repertório do grupo e incluiu canções como Mudjer trabadjadera, Kintal di Belinha e Fidjus Funana, mas foi com É Si Propi, um clássico do grupo, que a comunidade cabo verdiana presente se fez ouvir, dançando e cantando em uníssono o tema que acabou por se tornar um hino coletivo.
Durante toda a atuação a plateia respondeu com entusiasmo e reconhecimento, traduzindo um sentimento de pertença que a distância geográfica não apaga. Bino sublinha essa cumplicidade e assume, com gratidão, a forma como a comunidade assume e eleva a cultura. “Tocar aqui é como tocar lá na terra.” Ao longo dos anos, diáspora cabo verdiana tem-se revelado um agente indireto de promoção do país, contribuindo para ampliar o alcance da cultura e reforçar o seu estatuto enquanto referência identitária transnacional.

Horas antes da apresentação do grupo, a BANTUMEN teve oportunidade de falar com Bino, num encontro que combinou memória, resistência e futuro.


Num país onde a cultura sempre desempenhou um papel central na afirmação da identidade nacional, o funaná ocupa um lugar de destaque. Proibido durante o período colonial por ser considerado subversivo, este género musical foi durante décadas marginalizado, principalmente por dar voz aos anseios das camadas mais pobres da população cabo-verdiana. Tido como inconveniente pelas autoridades e pela Igreja, foi até alvo de proibições formais: quem tocava ou dançava funaná podia ver recusados documentos ou cerimónias religiosas. A repressão era uma tentativa de silenciar não apenas uma prática artística, mas uma forma de expressão identitária.

É nesse contexto de resistência e reconstrução cultural que Bino, membro fundador dos Ferro Gaita, relembra a importância do género como instrumento político e simbólico. “Queríamos sair da escravatura, então tínhamos que pegar no funaná”, afirma, referindo-se à sua força do género musical enquanto canal de mensagens codificadas e de afirmação colectiva. “E as mensagens? Eram através das canções. Vem daí a independência e então a revolução”, acrescenta, ligando o percurso do género ao processo de independência.

Fundado em 1996, o grupo Ferro Gaita nasce desse impulso de recuperar e afirmar uma herança cultural esquecida, num momento em que o funaná, já modernizado por bandas como os Bulimundo, começava a perder espaço face a sonoridades mais urbanas. Os Ferro Gaita optaram por seguir o caminho inverso. Ao voltarem à instrumentação tradicional, a gaita diatónica e o ferrinho, e à linguagem popular, reacenderam o gosto pelas formas mais puras do género. A escolha revelou-se certeira: o álbum de estreia, Fundu Baxu, vendeu mais de 40 mil cópias, um número significativo num país com pouco mais de 400 mil habitantes à data.

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“Receber um convite para fazer um dueto com um jovem é uma coisa linda.”

Bino, Membro dos Ferro Gaita

Ao longo dos anos, a banda tornou-se uma referência incontornável da música cabo-verdiana. Mas essa posição de destaque não é, para os seus membros, sinónimo de conforto e Bino fala com seriedade sobre o papel que desempenham. “É um ato de responsabilidade, de unidade, de eficácia”, aliado a uma consciência coletiva assente numa estrutura de afetos e enraizada em relações familiares e de amizade. “Sou padrinho do filho do Iduino, ele é padrinho do meu filho, padrinho de casamento. É a nossa família”, diz, dando a entender que a coesão do grupo vai muito além dos palcos.

É também nessa ligação entre os seus membros que reside a força da longevidade. Mais de vinte anos depois da fundação do grupo, continuam a fazer parte da banda os mesmos rostos centrais e o sentido de missão mantém-se intacto. “A amizade, a alegria, a coesão, a camaradagem” são, para Bino, elementos inegociáveis e o verdadeiro motor do projeto.

Com o passar do tempo, a música do grupo passou a ser também uma ponte entre gerações. Jovens artistas, muitos deles oriundos de géneros como o rap ou o afrobeat, procuram hoje nos Ferro Gaita uma ligação à tradição. Temas como Moda um Passaro, em colaboração com Trankafulha, ou Um Segundo, single onde se juntaram a Djodje, espelham esse entrosamento numa lógica onde tradição e modernidade andam lado a lado. “Receber um convite para fazer um dueto com um jovem é uma coisa linda”, conta.

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📸 Ferro Gaita durante apresentação no Festival MED | Djamir Afonso

Essa abertura ao diálogo intergeracional não é recente, mas tem-se intensificado com a proliferação de novas linguagens sonoras - o cotxipó, género que deriva do funaná, é disso exemplo - e Bino não vê nisso uma ameaça, pelo contrário, acredita que é a música a seguir o seu próprio percurso. “Eles estão a apostar, a fazer inovação dentro da própria música... estão no bom caminho.”

O grupo, que já atuou nos cinco continentes, assume que a comunidade cabo verdiana em Portugal ocupa um lugar especial, muito próximo da realidade que é cantar e tocar “na terra”. Bino descreve essa experiência com familiaridade e assume que o sentimento de pertença não se dilui com a distância. De certa forma, o grupo funciona como elo de ligação entre as ilhas e as suas comunidades espalhadas pelo mundo. “Onde estiverem os cabo-verdianos, há fusão, há força, há alegria.”

A dimensão itinerante da banda tem contribuído também para a projeção internacional da cultura cabo-verdiana. Os Ferro Gaita não só representam uma sonoridade, mas carregam consigo uma história de resistência, afetos e pertença e, ao longo dos anos, foram sendo reconhecidos por isso. Em 2007, receberam a Medalha Nacional de Mérito Cultural. E em 2024, celebraram com o Ministério da Cultura um protocolo de apoio à preservação do funaná enquanto património imaterial nacional, reforçando o seu papel como guardiões e inovadores de uma memória coletiva.

A força da cultura enquanto alicerce da identidade cabo-verdiana atravessa todo o discurso de Bino. Não como abstração, mas como ferramenta concreta de emancipação. “A cultura é o expoente máximo de um país”, afirma, reconhecendo o valor das instituições, mas sublinhando, acima de tudo, o papel ativo do povo. A resistência cultural, insiste, foi - e é até aos dias de hoje - o maior motor da afirmação nacional.



Apesar do reconhecimento, recusa qualquer sentimento de missão cumprida e quando confrontado com a pergunta “o que ainda falta fazer?”, responde, entre risos: “tenho muitas coisas ainda para fazer porque ainda estou novo.” A frase, dita com leveza, carrega a convicção de que o caminho se constrói em permanente movimento, baseado numa ética de trabalho que recusa a repetição e privilegia a descoberta.

Já em jeito de conclusão, e depois ser desafiado a deixar uma mensagem ao público, Bino não hesita em falar na língua em que melhor traduz afetos e pertença. “Nhos podi bem, hoji nsta bom pa nhos.” E estava, como os Ferro Gaita sempre estiveram.

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