Festival Ecoar e a importância de (re)lembrar as línguas que o colonialismo tentou calar

October 27, 2025
festival ecoar entrevista
Yolana Lemos, Diretora do Projeto Ecoar | DR

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Em Angola, dezenas de línguas nacionais coexistem com o português, mas poucas chegam às salas de aula. Desde a independência, a língua oficial consolidou-se como instrumento de administração e mobilidade social, enquanto as línguas locais permaneceram confinadas à oralidade familiar ou às zonas rurais. O Ecoar, um festival criado pelo Banga Colectivo — grupo de arquitetos e artistas angolanos sediados em Lisboa —, nasce dessa fratura para questionar a hierarquia linguística herdada do colonialismo e devolver à oralidade o estatuto de conhecimento.

“Queríamos criar um espaço onde as línguas pudessem coexistir sem que uma anulasse a outra”, explica Yolana Lemos, Diretora Geral do Projeto. “O nome Ecoar vem da vontade de fazer ressoar o que ficou silenciado. Escutar é um gesto político e afetivo, e é também uma forma de reatar o que o tempo e a história foram separando.” A primeira edição, a decorrer nos dias 8, 10 e 11 de novembro, propõe escutar aquilo que sobreviveu fora do livro e da escola, histórias, canções, provérbios e modos de pensamento transmitidos pela voz.

Desde 2020, o Banga Colectivo tem vindo a investigar a relação entre território, memória e língua, questionando a forma como o português, embora tenha unificado o país, também distanciou as pessoas das suas referências culturais. “O português é a língua da instrução e do Estado, mas não é a língua da casa nem da intimidade”, nota. “Isso cria uma distância que se sente na pele, sobretudo nas gerações mais novas, que já não falam com os avós na língua deles.” Para a diretora, o festival é o prolongamento natural de um percurso assente no “trabalho com comunidades, escolas, professores e sobas. Percebemos que a língua portuguesa, embora essencial para o funcionamento do país, também apagou muitas vozes. O Ecoar nasce para devolvê-las ao centro.”

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“Queríamos começar num lugar onde as tensões da lusofonia são mais visíveis. Há comunidades africanas que vivem em português, mas pensam noutras línguas"

Yolana Lemos, Diretora Geral do Projeto Ecoar

festival ecoar entrevista

Fotografia com membros do Coletivo © Banga Coletivo, 2023

A escolha de Lisboa, mais precisamente Sintra, para esta primeira edição é justificada pelos laços seculares com o continente africano que se estendem aos dias de hoje. Cidade-matriz da história colonial e espaço de múltiplas diásporas, Lisboa torna-se aqui um ponto de escuta. Sintra, enquanto concelho, alberga uma comunidade significativa de afrodescendentes, muitas vezes unida pela experiência comum de habitar entre cá e lá, num limbo nem sempre fácil de gerir. “Queríamos começar num lugar onde as tensões da lusofonia são mais visíveis. Há comunidades africanas que vivem em português, mas pensam noutras línguas. É nesse cruzamento que o Ecoar quer agir.”

O festival articula programação artística, pedagógica e comunitária. A 8 de novembro, será lançado o livro Ecoar, que reúne conversas, ensaios e registos de campo do coletivo. A 10 de novembro, às 16h, o professor Sérgio Wayami, linguista e ativista pela valorização do kimbundu, orienta uma oficina para crianças numa escola de São Marcos, Sintra. A escolha do público tem por base a necessidade de “começar por quem ainda pode reaprender a escutar. As crianças ficam fascinadas quando descobrem que as palavras que ouvem em casa têm origem e estrutura, que são tão legítimas quanto o português que aprendem na escola.”

No mesmo dia, às 18h, inaugura-se a Universidade da Oralidade, núcleo simbólico do festival. O projeto nasce de um encontro real com o soba do Bailundo, uma das mais antigas autoridades tradicionais de Angola e descendente direto da linhagem que governou o antigo reino uvimbundu. Nessa região, o soba além de representante local, é também um guardião de narrativas, genealogias e leis que sobrevivem à margem das estruturas estatais.

“Quando o visitámos, falou-nos da vontade de criar uma universidade onde os mais velhos pudessem transmitir o que a escola já não ensina”, recorda Yolana. “Para ele, a oralidade é método, arquivo e futuro.” Foi a partir dessa conversa que o coletivo concebeu o protótipo expositivo apresentado no festival, transformando a ideia do soba numa experiência sensorial sobre o modo como o umbundu organiza o pensamento e a vida comunitária.

“Interessa-nos pensar a lusofonia a partir das margens, e não do centro”

Yolana Lemos, Diretora Geral do Projeto Ecoar

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Cartaz Ecoar © Orquídea Tuba, 2025

A instalação materializa essa convivência entre o ancestral e o contemporâneo ao reunir gravações, objetos e registos de campo e coloca o visitante perante a tensão entre o saber oral e o conhecimento institucionalizado. “Queríamos que se sentisse a presença do soba, não como figura folclórica, mas como intelectual que pensa o seu território com a profundidade de quem o habita.”

Às 20h, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, realiza-se uma conversa que sintetiza o espírito do festival. O encontro reúne a investigadora Marisa Moorman, o músico Victor Gama e o tradutor Sérgio Wayami, sob moderação da jornalista Marisa Mendes Rodrigues, da BANTUMEN. O diálogo parte dos temas centrais do festival, a relação entre a língua oficial e as línguas tradicionais nos territórios das ex-colónias, e propõe uma leitura crítica sobre como o português moldou a cultura angolana, ao mesmo tempo que as línguas nacionais, como o kimbundu e o umbundu, resistiram como depositárias de identidade e memória.

A conversa procurará também refletir sobre a importância da língua na criação artística, seja na escrita, seja na música. A partir de exemplos da literatura angolana e da produção musical contemporânea, os convidados discutirão o modo como as palavras e os sons transportam histórias e modos de estar.

Marisa Moorman, professora e investigadora norte-americana especializada em música popular e cultura angolana, traz uma leitura histórica sobre as relações entre poder, língua e expressão artística. Sérgio Wayami, por sua vez, acrescenta à discussão a dimensão linguística e pedagógica. O músico Victor Gama encerra o festival a 11 de novembro, com um espetáculo a solo que combina os seus instrumentos experimentais, o toha e o acrux, acompanhado por Salomé Pais Matos.

A discussão sobre lusofonia atravessa o programa, mas o coletivo propõe olhá-la como um campo em movimento e não como conceito fechado. “Interessa-nos pensar a lusofonia a partir das margens, e não do centro”, observa. “Durante muito tempo, o debate foi feito a partir das instituições e dos países que detêm o poder da língua. O Ecoar quer deslocar esse ponto de escuta e abrir espaço para quem vive a língua de forma múltipla, híbrida, atravessada por memórias e por desigualdades.”

“A palavra lusofonia carrega o peso da história colonial, mas também a possibilidade de reescrever essa história. Quando nos encontramos em Lisboa, em Luanda ou no Mindelo, estamos a viver a língua como território partilhado, não como herança imposta”

Yolana Lemos, Diretora Geral do Projeto Ecoar

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Exposição do Banga Coletivo, "Soba Eternal" na 18.ª Bienal de Veneza © Yolana Lemos, 2023

Yolana clarifica que esse olhar não pretende romper com a lusofonia, mas reformulá-la de dentro, a partir das práticas culturais e quotidianas das comunidades africanas e afrodescendentes. “A palavra lusofonia carrega o peso da história colonial, mas também a possibilidade de reescrever essa história. Quando nos encontramos em Lisboa, em Luanda ou no Mindelo, estamos a viver a língua como território partilhado, não como herança imposta.”

Foi nesse contexto que o coletivo decidiu iniciar um mapeamento de agentes culturais angolanos na Área Metropolitana de Lisboa, artistas, comerciantes, investigadores e coletivos independentes que constroem pontes entre Angola e Portugal através da língua, da música e das práticas visuais. O objetivo é criar uma cartografia viva, feita de vozes que raramente chegam às instituições culturais. “Queremos perceber onde estão essas pessoas, o que produzem e como se relacionam com as suas comunidades. A ideia é que o Ecoar possa, a partir daí, tornar-se uma plataforma de ligação entre contextos e gerações”, explica.

A visão projeta-se também no futuro do festival, que prepara extensões em Cabo Verde, Moçambique, Brasil e São Tomé e Príncipe. “Queremos que o Ecoar seja mais do que um evento. Que se torne um espaço contínuo de diálogo e documentação, onde cada país traga as suas vozes e as suas urgências. A nossa intenção é criar um espaço de circulação de saberes, onde a língua portuguesa deixe de ser apenas um ponto de origem e passe a ser uma ferramenta de relação.”

O Ecoar inscreve-se num esforço mais amplo de valorização das línguas nacionais e das práticas orais, procurando aproximar o património imaterial da criação contemporânea. Ao integrar áreas que vão desde a arte à investigação, o festival propõe-se construir pontes entre memória e presente, numa tentativa de devolver à língua a sua dimensão política.“Cada língua é um arquivo de experiências humanas. Quando uma língua se cala, o mundo fica mais pequeno. O festival é a nossa forma de voltar a alargá-lo”, conclui.

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