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Nos dias 23, 24 e 25 de maio, o Parque da Quinta da Flamenga, em Vialonga, transforma-se em palco de cultura urbana, memória coletiva e celebração de identidade. O Festival Sotaques é de entrada livre e reúne nomes consagrados e emergentes que, nos últimos anos, têm moldado o cenário musical português. A curadoria é assinada pelos Wet Bed Gang, num evento que marca não só um regresso a casa, mas também um manifesto.
Formado por Gson, Zara G, Zizzy Jr. e Kroa, os Wet Bed Gang surgiram em Vialonga, em 2014, com uma missão clara: dar voz à zona, à vivência periférica e ao legado de quem acreditou que era possível. Entre hip-hop, R&B e afrobeats, esgotaram salas e quebraram recordes de streaming – no total, o grupo acumula mais de 300 milhões de visualizações no YouTube e 500 mil ouvintes mensais no Spotify. Mas o sucesso não os afastou das raízes, pelo contrário, ajudou a torná-las visíveis.
O sentimento de pertença levou o grupo a querer retribuir. Em conversa com a BANTUMEN, Kroa recorda que a ideia do Festival Sotaques nasceu após a digressão nacional e o concerto no Campo Pequeno. A proposta partiu da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, que sugeriu um concerto em Vialonga, mas a resposta foi outra. “Para quê voltar a casa e fazer só mais um espetáculo? Por que não criar algo maior?”. A ideia ganhou corpo com o apoio da autarquia e da Junta de Freguesia de Vialonga — e o sonho começou a materializar-se.
“É a forma que encontrámos de gritar aquilo que sempre vivemos em silêncio”
Kroa
Mais do que um regresso, o Festival Sotaques marca também um novo ciclo para o grupo. “É quase de nós para nós”, reforça Kroa. Pensado para a comunidade, o festival carrega o potencial de inspirar outras zonas com percursos semelhantes. “É a forma que encontrámos de gritar aquilo que sempre vivemos em silêncio”. Quem ouve os Wet Bed Gang sabe que não são raras as vezes em que o grupo menciona a Vblock nas suas composições. O diminutivo, usado para fazer referência à zona de Vialonga, deixou de ser apenas uma demonstração de orgulho das raízes e passou a carregar o peso da responsabilidade de quem vê na comunidade um alicerce para o seu trabalho. “Vblock é o nosso berço, é a nossa família. Não estamos a carregar só o nosso nome, Wet Bed Gang, estamos a levar a família Vblock também”.
A afirmação ganha outra dimensão quando se atenta ao nome escolhido para o evento. “Sotaques” não é apenas simbólico — é fundacional. Dá título a uma faixa do álbum Gorilleyez (2023) e traduz a pluralidade linguística e cultural que define o grupo. “O sotaque é a nossa forma de expressar. É a ligação ao mundo”, explica. Partindo da permissa que cabem vários estilos dentro de uma só língua, os Wet criaram uma linguagem onde há espaço para um português cantado de várias formas. Para Kroa, essa foi também a forma que o grupo encontrou para sobreviver naquilo a que chama “selva de cimento”. A metáfora, explica, refere-se à forma como o grupo teve que a aprender a mover-se para poder criar. “É quase como um gorila no cimento, tens que perceber como é que tu vais andar outra vez. Aqui não há árvores, aqui há cidades. Como é que tu vais expressar, como é que tu vais trazer algo de bom dentro do que tu acreditas e que são os teus valores?”.
📸 Conferência de Imprensa Festival Sotaques | DR
O festival surge como resposta, numa celebração da diferença que se reflete no próprio cartaz: Força Suprema, Phoenix RDC, Bonga, Nenny, Mariza, Mizzy Miles, Deejay Telio e Soraia Ramos são alguns dos nomes confirmados. Phoenix, também ele de Vialonga, é, para Kroa, “um pilar da cultura local”. Força Suprema, uma referência e a certeza de que as margens conseguem romper em direção ao centro. Mariza representa a pluralidade da música cantada em português e a possibilidade de levar o fado ao bairro. “Nunca vi um concerto dela, e sei que há muita gente aqui que também não”. Bonga faz a ponte entre gerações e geografias. Nenny, também da Vblock, é a representação da modernidade que não se esquece das raízes.
Para além dos nomes de peso, o festival abre espaço a novos talentos. A Zona Mista, um dos palcos, recebe artistas que caminharam com os Wet desde o início, mas cujos percursos não seguiram o mesmo rumo. “Fizeram música connosco, somos fãs, mas talvez não tenham tido as mesmas oportunidades.” Um palco que, segundo Kroa, é a prova de que o talento da zona não precisa de filtros, apenas de oportunidade. “A vida só não brilha todos os dias para toda a gente.” Outro momento de destaque será a atuação das batucadeiras. “É o verdadeiro sotaque”, afirma. O batuku — conduzido por mulheres cabo-verdianas — é ritmo, resistência, oralidade e herança. A sua presença no festival é uma forma, também, de homenagear a presença do sotaque cabo-verdiano na capital.
Mas se há nome que atravessa tudo o que os Wet Bed Gang fazem, é o de Rossi. Membro fundador do coletivo, falecido em 2014, foi motor, inspiração e elo de união. O nome do grupo nasceu para o homenagear. O álbum Filhos do Rossi e o single Estrela Maior são alguns dos trabalhos que mantêm viva essa ligação emocional. Em Vialonga, o mural com o seu rosto tornou-se lugar de encontro e memória. Foi lá o ponto de partida para a entrevista com Kroa. Parte da criação do Festival Sotaques, assume, é também para ele — celebração da vida que deixou e do “legado” tantas vezes mencionado nas músicas. “Não tem como não falar dele".
“A cultura também salva”
Kroa
Entre essa memória e o presente, há uma coincidência que, segundo o artista, já é um bom motivo para as pessoas se deslocarem ao festival: o “Sotaques” arranca no dia 23 de maio — data em que Kroa celebra o aniversário. “Eu faço anos, dia 23. Venham, vai estar bom tempo, boa música, bons artistas, boa comida, gastronomia africana no máximo”. Além das apresentações musicais, o grupo fortalece os empreendedores locais ao dar-lhes espaço através de bancas gastronómicas. A ideia é “retribuir à comunidade aquilo que ela tem dado”, mas acima disso, homenagear quem, de uma forma ou de outra, fez parte do percurso.
O Festival Sotaques é isso: retribuição. Mas Kroa vai mais além e não se escusa a vê-lo como manifesto “político e social”. Mais do que mostrar talento, trata-se de criar espaço para a comunidade se ver e se reconhecer. "A cultura também salva", diz, sublinhando a urgência de se criar alternativas nas periferias. “Nós estamos a dizer às pessoas que existe caminho. Que existe forma. Que não estamos sozinhos”.
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