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Entre os dias 1 e 4 de outubro, Lázaro Ramos esteve em Lisboa para duas conversas em torno da sua produção literária - a primeira, na Livraria da Travessa, e a segunda, na Livraria Menina e Moça, com a presença de Wilds Gomes. O ator e realizador brasileiro trouxe consigo não apenas os títulos que têm marcado a sua obra, mas também a vontade de dialogar com leitores sobre identidade, ancestralidade e cidadania, temas que atravessam tanto a sua literatura infantil como os livros dirigidos a jovens e adultos.
Foi nesse contexto que, momentos antes de uma das sessões, conversou com a BANTUMEN, partilhando reflexões sobre a escrita, o seu percurso e os desafios de pensar o Brasil e a lusofonia a partir da literatura.
Lázaro Ramos regressa a Lisboa com a serenidade de quem volta a um lugar onde a língua soa familiar e o afeto se reconhece. Ao caminhar por certas ruas, diz sentir-se em Salvador, e esse reconhecimento mais do que geográfico, é o reencontro com um espaço onde trabalhou, criou e estabeleceu laços duradouros. “Quando souberam que eu vinha para cá, o telefone começou a receber mensagens e convites. Tive até de me esconder de tanto convite que recebi”, conta, entre risos. A primeira passagem por Portugal aconteceu há mais de uma década, quando participou na coprodução de O Grande Kilapy, de Zezé Gamboa, experiência que lhe abriu portas e o aproximou de artistas como Pedro Hossi, com quem mantém amizade. “É muito bom chegar a um lugar onde se criou uma ligação com as pessoas e onde o trabalho é reconhecido.” O público português continua a abordá-lo nas ruas, chamando-o Foguinho ou Mister Brau - personagens de Cobras & Lagartos e Mr. Brau que, mesmo à distância, permanecem no imaginário coletivo.
“Percebi que apesar do título, não era só sobre a minha pele, mas sobre uma experiência colectiva”
Lázaro Ramos sobre o livro Na Nossa Pele
© BANTUMEN
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Ainda assim, a televisão é apenas uma das linguagens onde Ramos se move. Ator, realizador e escritor, construiu uma trajetória que atravessa formatos e públicos distintos. “O escritor nasceu por causa do desemprego. Eu sempre escrevi, mas tinha vergonha de mostrar. Até que uma noite de insónia deu origem a uma peça de teatro que ficou dois anos em cena,” conta. A partir daí, o gesto de escrever deixou de ser um recurso circunstancial para se tornar uma extensão natural do seu ofício. “O meu processo é caótico. Às vezes escrevo em guardanapos, gravo áudios, deixo ideias soltas. Mas é sempre o desejo de comunicar alguma coisa, de falar sobre o que me inquieta.”
A inquietação transformada em palavra atravessa toda a sua obra literária, que soma já mais de uma dezena de títulos publicados. Desde os primeiros livros infantis - Caderno de Rimas do João e Caderno sem Rimas da Maria, escritos com e para os filhos fruto do relacionamento com a também atriz Taís Araújo -, tem procurado criar narrativas que ajudem as crianças a compreender o mundo, não a simplificá-lo. “As crianças são muito mais inteligentes do que a gente pensa. Só precisam que falem com elas com verdade.” No primeiro, constrói um conjunto de poemas breves, cheios de ritmo e imaginação para explicar aquilo que comumente dizemos, mas nem sempre sabemos explicar - como a saudade, que cita a título de exemplo; no segundo, dá voz a Maria, que reivindica o direito de escrever sem rimas, afirmando a liberdade de expressão como forma de identidade.
Em A Menina Edith e a Velha Sentada, o autor observa o comportamento das crianças e percebe nelas uma ausência de espaço para o tédio e para a invenção. “Quis falar sobre equilíbrio. Tudo bem usar a tecnologia, mas também há um mundo lá fora feito de brincadeiras e de criação livre.” O livro tornou-se uma espécie de manifesto sobre o tempo presente, refletindo sobre o que se perde quando a infância se restringe ao ecrã.
Se a literatura infantil lhe impõe o desafio de dialogar com um público em formação, a escrita dirigida a adultos confronta-o com outras exigências. O exemplo mais marcante - e também o mais recente - é A Rainha da Rua Paissandu, livro em homenagem à atriz Ruth de Souza, pioneira que, em meados do século XX, ousou afirmar-se num cenário em que mulheres negras dificilmente encontravam espaço. “Esse livro foi o mais difícil da minha vida”, reconhece. A editora esperava uma biografia convencional, mas a tarefa que Ruth lhe confiara - “Lázaro, eu confio em ti para mostrar ao mundo como quero ser vista” - adicionava outra camada à missão. Entre noites em claro e sucessivas tentativas, chegou a reescrever dezassete versões antes de encontrar o tom certo. “No final, percebi que não era apenas uma biografia, mas uma tradução emocional. Ruth inventou um sonho numa época em que nenhuma mulher negra ousava imaginar-se atriz.”
“As crianças são muito mais inteligentes do que a gente pensa. Só precisam que falem com elas com verdade”
Lázaro Ramos
© BANTUMEN
O gesto de tradução de uma experiência individual para um horizonte mais amplo atravessa também os seus ensaios e Na Minha Pele, lançado em 2017 sem grandes expectativas, trouxe-o de forma inesperada para o centro do debate público sobre identidade e representação, algo que nos últimos anos tem ganhado espaço no Brasil. “Fico felizão quando vejo gente estudando o livro na escola. É bonito ver que ele tem uma vida própria.” O impacto foi além do esperado e o livro passou a ser estudado em escolas e universidades, ganhou versão em braille e tornou-se referência para leitores que, nas palavras do autor, “se viram pela primeira vez escritos”. Mais do que isso, Lázaro admite ter percebido que “apesar do título, não era só sobre a minha pele, mas sobre uma experiência colectiva.”
Se o primeiro livro partia de uma experiência pessoal, Na Nossa Pele (2023) nasce da escuta. “O primeiro era sobre mim; este é sobre nós. Escrevi depois de ouvir o que as pessoas sentiram, das cartas que recebi, das conversas que tive. É um livro sobre escuta.” O autor descreve-o como um prolongamento do diálogo com o leitor, menos um relato autobiográfico e mais um espaço de reflexão coletiva sobre o que se partilha, o que se herda e o que se aprende ao nomear o que se sente.
É nesse ponto de cruzamento entre a experiência íntima e a partilha coletiva que se inscreve também a sua reflexão sobre ancestralidade. Ramos cresceu numa ilha que, em tempos, foi quilombo, e fala da infância como um espaço de convivência natural entre religiões afro-brasileiras e catolicismo. “Na minha infância aquilo era natural. Só percebi a rejeição quando saí da minha bolha de proteção.” O contraste entre o lugar de origem e o mundo exterior revelou-lhe a dimensão simbólica das raízes e a necessidade de mantê-las vivas. “A gente precisa aprender a olhar o passado com orgulho, não com vergonha. É daí que vem muita força.” A experiência pessoal, marcada pelo contraste entre a valorização da ancestralidade na infância e a indiferença que encontrou fora da Bahia, conduz inevitavelmente à leitura que faz do Brasil contemporâneo.
Consciente da polarização política que o país atravessa, vê na arte um espaço de denúncia e de mediação, ainda que limitado. “A arte não resolve tudo, mas abre portas, facilita conversas e denuncia.” Recorda exemplos recentes do cinema brasileiro, como o filme Ainda Estou Aqui, que evocou o desaparecimento do deputado Rubens Paiva durante a ditadura militar e recebeu o Óscar, ou Manas, que denuncia a exploração sexual de meninas. Para Ramos, essas obras mostram como a produção cultural assume um papel fundamental na construção de consciência coletiva.
“A arte não resolve tudo, mas abre portas, facilita conversas e denuncia”
Lázaro Ramos
© BANTUMEN
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Do olhar sobre o Brasil passa quase sem pausa para o mapa mais largo da lusofonia e admite que foi em Cabo Verde, local onde terminou de escrever Na Nossa Pele, que percebeu que as pontes entre países de língua portuguesa ainda estão por construir. “Temos um idioma comum, mas ainda não nos conectamos o quanto merecemos. Sinto falta de ver mais autores africanos em feiras literárias brasileiras. Os portugueses até aparecem de vez em quando, mas é pouco”, admite, lembrando que a televisão e a música sempre fizeram esse trabalho de mediação, mas a literatura, quase silenciosa, ficou à margem. “Precisamos de um intercâmbio fora das novelas e fora da música”, insiste, ao mesmo tempo que recorda as conversas que teve com Zezé Gamboa durante as filmagens de O Grande Kilapy, quando se falava da CPLP como um espaço possível de criação conjunta. “Na altura parecia que ia acontecer, mas acabou por adormecer. Vir aqui com a literatura é também para tentar reativar essa conversa.”
Entre países que se idealizam mutuamente, o escritor defende a necessidade de um conhecimento mais concreto e concebido para lá do lado performativo. “Idealizo uma África que às vezes é uma África política, construída para ter força. Mas é importante conhecer de verdade, ver o que há de comum e o que há de diferente”, afirma.
Depois de refletir sobre o papel da literatura no diálogo entre países, Ramos volta o olhar para dentro. Prepara-se para regressar às novelas da TV Globo, agora no papel de vilão, e, ao mesmo tempo, reorganiza o tempo da escrita. Em novembro publicará um novo livro infantil sobre ancestralidade — tema que regressa como tentativa de conciliar memória familiar e responsabilidade educativa. “É o público mais exigente. Tenho intenções de plantar sementes nas crianças para que se tornem adultos mais saudáveis. Quando escrevo para que aprendam a nomear o que estão sentindo, é para que talvez, quando fiquem adultas, não saiam brigando por aí sem entender a própria raiva.”
Com o novo livro concluído, assume interromper os lançamentos por dois ou três anos. “Quero escrever uma ficção adulta. Esse é o meu grande desafio. Já comecei vários livros, abandonei-os e decidi concentrar-me apenas num.” A decisão nasce da consciência de que a escrita exige outro compasso e um tempo que não se mede em produtividade, mas em maturação.
No fim, o que atravessa o percurso de Lázaro Ramos não é o êxito visível do artista, mas a inquietação constante de quem não se acomoda às respostas. Cada livro e cada projeto são tentativas de nomear o que permanece sem nome: o medo, a raiva, a ternura, a identidade. E talvez seja essa a razão da identificação do público (que esgotou as duas sessões): na sua forma de contar, o individual é sempre um espelho do coletivo, e a arte, um modo de devolver sentido ao que parece disperso.
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