“Não preciso de ser gangster para fazer rap”, Libra

May 12, 2025
 Libra entrevista
📸: Wilds Gomes| BANTUMEN

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Aqui na BANTUMEN, seguimos o percurso artístico de Libra desde 2020. Jovem cantora e compositora portuguesa, de raízes cabo-verdianas e angolanas, cresceu rodeada de música, graças sobretudo à avó materna, que a introduziu desde cedo a sonoridades como a morna, o samba, a bossa nova e os clássicos da Música Popular Brasileira. Foi com a avó que cantou, pela primeira vez, a música “Garota Solitária” de Ângela Maria, quando tinha apenas cinco ou seis anos. O avô contribuía com as mornas de Cesária Évora e Tito Paris, enquanto o pai a expôs ao universo do rock, dos Rolling Stones aos Scorpions, banda que viria a tornar-se numa das suas grandes referências.


Libra iniciou a sua formação em Piano Clássico no Conservatório de Música de Sintra, mas acabou por seguir Farmácia Biomédica em Coimbra, influenciada por uma visão familiar mais tradicional. Agora, 100% dedicada à música, acaba de editar o álbum Everyone’s First Breath.


Num banco de jardim, entre sombras leves e a vibração amena de um dia soalheiro em Campo Grande (Lisboa), sentámo-nos com a artista. Everyone’s First Breath, chega com uma certeza: Libra não está aqui para agradar, está aqui para ser. Rodeada pelo verde que acolhe Lisboa na primavera, conversámos sobre dor, liberdade, amadurecimento e as muitas camadas que fazem da sua música um lugar de reivindicação, mas também de cura. 


De caneta firme e alma exposta, Libra revela-se uma mulher que aprendeu a respirar por si mesma, de pulmão cheio, com todas as palavras e todos os feitiços que a fizeram cair e levantar.


Da mesma forma que se faz um bebé, nasceu este álbum. Everyone’s First Breath é o resultado de nove meses de gestação emocional, criativa e espiritual, um verdadeiro parto artístico que já viu a luz do dia e está disponível em todas as plataformas digitais.

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universal - Calema/dilsinho

Quando é que aprendeste a usar a dor como sabedoria?


Não sei dizer um momento no tempo. Acho que foi gradual. Tive uma infância assim, meio conturbada. Aliás, uma infância muito feliz, até à separação dos meus pais. A partir daí, comecei a perceber o que era o mundo.


Comecei a perceber o que era não ser feliz a 100%. E esse choque de realidade, porque fui lidar com uma série de coisas que não existiam na minha cabeça, começou a ensinar-me. Aliás, fez-me crescer, bem rápido. A partir do momento em que começas a crescer muito mais rápido do que era suposto, começas, automaticamente, a usar a dor para crescer.


Na altura, já tocava piano. Lembro-me perfeitamente de que o meu piano estava todo escrito. Tenho um piano acústico e escrevia poesia no piano, era a forma de deitar cá para fora as coisas que tinha dentro. Não podia falar com a minha família e dizer: “estou triste”, “quero falar sobre isto”... porque, literalmente, vinha toda a gente falar comigo. Era meio o colo da família, mesmo sendo criança. Sinto que, desde essa altura, isso começou a acontecer. Não há um turning point, foi uma cena gradual.


Disseste em tempos que "a dor é combustível, se a aceitares como um componente natural desta coisa complexa que é viver". Como é que se vive?


Relativizando tudo. Olhando para o sol e ficando grata porque está sol. Olhando para a chuva, e ficando grata também porque está a chover, então as plantas vão ter água para crescer e precisamos delas, apesar de ser um dia menos feliz.


É olhar para as coisas pequeninas que dão alguma alegria, olhar para os nossos, para aquilo que fizemos e ter orgulho nisso. Olhar para o que ultrapassámos, já passámos por tanta coisa e ainda estamos aqui, e sentir orgulho nisso também. É bom agarrarmo-nos às coisas pequeninas, porque se estiveres constantemente a olhar para o mundo, para a maior imagem do mundo, ficas deprimido. Vivemos tempos difíceis. Então é bom isso.


E foi também nessa demanda que nasceu a “Spells”? Acaba por ser uma revolução musical e, ao mesmo tempo, um basta ao silêncio no mercado.


Foi as duas coisas. O basta ao silêncio acabou por ser consequência da revolução musical. Fiquei sem equipa a determinada altura. Ficar sozinha fez com que pudesse explorar tudo. Para onde queria ir, sem ninguém a influenciar: "és boa nisto", "és boa naquilo". I'm doing my shit (estou a fazer a minha cena).


Sempre fui mais aficionada por hip-hop, e percebi que era por aí. A escrita já era de hip-hop, e cortava muitas letras para caber num formato mais cantado, mais R&B. Estando sozinha, descobri que consigo fazer isto. Prefiro mil vezes escrever assim. Consigo dizer muito mais coisas neste formato. Quando percebi, já estava a escrever bem rap. A cena foi aprimorar a performance como rapper.


A Spells não foi a primeira música de rap que escrevi, mas foi onde fui mais rapper. Comecei com spoken word, e a Spells foi boa para isso. Veio de raiva, por me dizerem que não podia fazer rap, por não vir da rua, por não ter crescido nas batalhas. Não preciso de batalhas para fazer rap. I'm sorry. Não tenho que ser gangster. A “Spells” veio daí. Foi consequência de estar sozinha e escrever o que quiser.


Então a Libra está para o hip-hop como a Kim Yeji está para o tiro desportivo?

(Risos) Epá, não sei. Se bem que a Kim Yeji ficou mais conhecida pela pose dela a atirar, que foi boa. Estava ali com muita confiança, mas ainda não está a ter resultados incríveis, pelo menos nos Jogos Olímpicos. Talvez eu esteja assim: ainda sem grandes resultados, mas com a pose lá.


Na “Spells”, quase que fazes um desabafo na introdução. Algumas pessoas riram-se quando quiseste fazer hip-hop, menosprezaram a tua caneta. Sempre acreditaste no que querias fazer ou duvidaste por causa disso?


Claro que duvidei. Comecei a escrever rap tão tarde porque duvidava da capacidade de interpretar. Nunca duvidei da caneta, desde a primeira música, “Bless Me Honey”, fiquei mega orgulhosa. Sou muito crítica com os outros e comigo. Quando sinto que está bom, está mesmo bom. Sempre me considerei boa lyricista. No rap, tinha dúvidas: como colocar a voz, a métrica... O flow ainda é básico, mas estou ok com isso. São etapas. Para lançar uma música, tenho que estar 100% confortável, porque sei que vão vir críticas. O processo demorou.


Dizes que o flow ainda é básico. Mas há mesmo necessidade de evoluir ou às vezes o básico é o certo?


Acho que há sempre necessidade de evoluir. Descobri há pouco tempo o Nerve, incrível caneta e flow. Dá-me entusiasmo. Quero isso também. Não tens de dar um show técnico. Não gosto de ouvir alguém só a mostrar técnica. Dou mais valor à letra, mas quero ter liberdade de fazer tudo.


A cantar, sinto-me à vontade, range vocal gigante, tanto canto lírico como rap. Quero ter isso também no flow. Podes ser muito mais complexo enquanto artista. Há sempre estrada para evoluir. Não estar lá ainda não impede de lançar música e assumir-me como rapper.


Mas na “Use Your Pain Wisely” já fazes isso. A tua voz está mais grossa. Mudança de flow?

Na verdade, essa música tem o mesmo flow do início ao fim. O que muda é o pitch. Fizemos um pitch down para dar um efeito. Pode parecer que é outro flow, mas é uma ilusão de áudio. Queria que se concentrassem na história, com a voz já diferente. Na Spells sim, há mudanças de flow.


Este álbum é uma resposta para quem duvidou e para a Libra de há cinco anos que também duvidava?


Não sei. Ao contrário da “Spells”, que foi resposta a provocações, o álbum não teve esse propósito. Passei por um spiritual awakening (acordar espiritual), como muita gente. Mudou a forma de ver o mundo e a mim própria. Comecei a escrever de outra forma e com mais frequência. Sinto-me canal. A espiritualidade abriu-me a criatividade. Tive palavras para histórias que não eram minhas, mas podiam ser. O álbum foi uma necessidade de dar voz ao que tenho dentro. A muitas que vieram antes e não puderam falar. Agora posso.


Quando foi a última vez que respiraste pela primeira vez?


Acho que foi quando me despedi (risos). O "First Breath" do álbum remete ao parto. Respirar com os pulmões cheios foi depois da despedida. Antes, já me sentia livre, mas ao começar a trabalhar, pus-me numa caixinha. A faculdade deu-me liberdade, mas o mundo corporativo voltou a limitar-me.


A primeira faixa, “The Moment I Was Born”, fala disso, de deixar para trás a roupa que não é minha, de tentar passar despercebida, cansada de bocas. Tomei a decisão de ser e mostrar o real. O álbum é isso: liberdade. O videoclipe mostra isso. Expõe-me a ódio, de quem me conhece e não conhece. Mas senti que tinha de ser. Quero que seja normal ter pele à vista sem ser sexualizada.


A mulher não pode ser sexualizada só por existir. Isso tem de parar. Falo disso no álbum. Para ser respeitada, não preciso de estar vestida nem de ser pura. A afirmação é: tu és tu. Quando vives assim, é mais fácil lidar com os comentários, até dos amigos e familiares. Estou mentalmente preparada para a onda. Se vier, é sinal de que estamos a chegar a muitos lugares. Mas os comentários negativos ficam sempre ali no fundo. Especialmente dentro de casa. A parte mais conservadora da família já considera escândalo o que faço. E isso lixa mais do que o que dizem os de fora. Se tivesse esse berço, estava tudo ok.


E quanto da Libra de “Bless Me Honey” está neste álbum?


Sou a mesma pessoa, com menos amarras. Quando lancei “Bless Me Honey”, tinha 23 anos. Achava que era crescida, mas tinha muito por resolver, corpo, opiniões, educação... Ainda me retraía para não incomodar. Agora não. Já tentava quebrar algumas dessas coisas, mas a maturidade trouxe mais liberdade. Talvez nunca seja completamente livre, mas é um processo. Sou a mesma mas mais velha e mais madura.

Nestes últimos tempos, houve muitos acontecimentos que reabriram a luta das mulheres

Libra

 Libra entrevista

📸: Foto BANTUMEN/ Wilds Gomes 

Uma coisa é lançar singles, outra é criar um álbum. Como foi viver esse processo criativo?


Foi muito gostoso. A palavra é mesmo essa. Tive stress, mas a parte de escrever foi incrível. Não tive de andar à procura de temas. Foi tudo orgânico. Sempre quis 13 músicas, sem saber exatamente sobre o quê. Queria algo interventivo, sociopolítico. Acabei por falar sobre a condição de ser mulher. Não foi planeado. A espiritualidade, a ancestralidade, o feminino, tudo isso passou para o papel. Quando dei por mim, o álbum estava feito. Nove meses, parece um bom presságio.


Pensei que devia ter deixado marinar mais. Fiz mais do que 13 músicas e podia ter feito mais. Mas estava contente. Falo tudo o que queria. A parte de que mais gosto é escrever.


Já disseste que partes de ti ficaram no álbum. Qual ficou mais espelhada em Everyone’s First Breath?


A mais interventiva, reivindicativa, feminista. Era essa que precisava de voz agora. Teve palco nos últimos anos, mas não o suficiente. Nestes últimos tempos, houve muitos acontecimentos que reabriram a luta das mulheres. Tinha que falar sobre isso. Há algo em mim que vive essa luta com muita intensidade, como se já a tivesse vivido. É espiritual. Outras vidas, talvez.


Sentes que o álbum está finalizado como querias ou ainda mexias em algo?


Não sou o tipo de artista que quer refazer tudo. Temos que pôr ponto final nas coisas. Podes passar a vida a melhorar o mesmo trabalho. Mas tive de apressar o fim do álbum, por razões que não vale a pena referir. Sinto que podia estar melhor, talvez com skits, para ajudar na viagem mas fiz o melhor que podia, nas condições que tinha. Se tivesse mais uns três meses, talvez fizesse diferente.


Desde que nasceste tens uma história para contar. Em quem se tornou a Sónia Curcialeiro, ou a Libra?


(Risos) Adorei a pergunta. Tornou-se numa mulher mais livre, uma artista mais completa. Menos preocupada com o olhar dos outros, com o espaço que ocupa. A pessoa e a artista são praticamente a mesma. Não há muito a dizer: sou mais livre. Libertando-te das amarras da educação, das opiniões, dos olhares, tornas-te mais livre. Tanto a Sónia como a Libra são mulheres livres, mas nunca completamente, porque vivemos em sociedade. A liberdade é sempre condicionada. Mas é uma liberdade qb. [quanto baste], suficiente para viver sem me diminuir. Ainda há coisas a trabalhar, e isso é lindo.



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