Na Mesa das Poderosas, a escuta prolonga-se para lá da psicologia

October 22, 2025
mesa das poderosas entrevista
Selma Pires, psicóloga, escritora e organizadora da Mesa das Poderosas | DR

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A história da Mesa das Poderosas começou num dos períodos mais silenciosos e paradoxalmente mais ruidosos da vida contemporânea: o confinamento de 2020. Enquanto o mundo se fechava em casa e a incerteza se instalava, Selma Pires, psicóloga e escritora angolana, sentia a necessidade de criar espaço com sentido, onde a escuta não fosse apenas uma metáfora e onde a presença traduzisse a realidade que as redes tendem a esconder. “Comecei a fazer vídeos todos os dias, só para dizer ‘bom dia, poderosa, como é que tu estás?’”, recorda. Os primeiros vídeos, gravados muitas vezes de pijama e num gesto quase intuitivo, acabaram por transformar-se num ponto de encontro, e foi quando deixou de aparecer por uns dias que percebeu o alcance daquilo que estava a construir: “Mandaram-me mensagens a perguntar porque é que não apareci. Foi aí que percebi que não era uma brincadeira.”

A partir desse impulso espontâneo nasceram as primeiras experiências de partilha em grupo, que começaram com um jantar no Zoom, improvisado entre filtros, risos e alguma timidez. Já em 2020, quando as restrições começaram a abrandar, organizou um piquenique em Lisboa onde “apareceram dez mulheres, cada uma trouxe uma mensagem, e foi aí que nasceu”. Ao longo dos últimos cinco anos, Selma transformou aquilo que começou como um encontro informal entre desconhecidas num espaço de partilha, onde mulheres de diferentes idades e origens se reúnem para conversar sobre aquilo que as atravessa - os medos, as conquistas, a maternidade, as amizades e as perdas.

A 12.ª edição da Mesa das Poderosas, marcada para 25 de outubro de 2025, no X Create Hub, é um “testemunho de crescimento e maturidade” ao mesmo tempo que simboliza a consolidação de um projeto que entende o seu tempo e se reinventa a cada edição. É o primeiro ano em que o evento adquire o formato de conferência, marcado por palestras e momentos de confraternização. Com uma atmosfera pensada para “para rir, chorar e respirar”, o evento afasta o formalismo e as hierarquias, dando lugar a um espaço de escuta ativa, onde o objetivo é fazer com que todas se “sintam em casa”. A configuração resulta de um processo de maturação pessoal e profissional que a cada edição procura preservar a leveza e a autenticidade que tornaram As Mesas no espaço de partilha que é hoje. “Vejo a mesa como um reflexo de mim, sem filtros”, mais do que isso,  “a mesa é o meu lembrete de que não estou sozinha”.

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“A psicologia ensinou-me que não preciso de seguir um padrão. Posso ser eu e continuar a ser uma boa profissional”

Selma Pires

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A autenticidade estende-se à escolha das oradoras, um processo que descreve como pessoal, ancorada na visão de que o impacto reside, em primeira e última instância, nas relações que nascem no evento e acabam por prolongar-se fora dele. Eliane Cardoso, Jandira Lusa, Natércia Oliveira e Cátia Semedo Ramos compõem o painel de oradoras cujas áreas de atuação vão desde o empreendedorismo ao coaching/lifestyle. “Cada uma delas representa um bocadinho de mim. Eu não convido pessoas pelos números, convido pelo que acrescentam.”

Com o tempo, aprendeu a gerir o projeto de forma menos rígida, confiando mais na intuição e na organicidade do processo. Deixou de lado o controlo e passou a liderar. Pelo caminho, percebeu também que nem sempre é preciso “inventar” fórmulas novas, sobretudo se existir uma  base consiste. “Antes eu queria controlar tudo. Agora deixo-me levar. Ainda assim, organizo-me, acabo uma edição e já estou a pensar na seguinte. Mas há algo que nunca falha: o básico. O básico funciona sempre.”


O percurso de Selma Pires prolonga-se muito para lá da Mesa das Poderosas. Nascida em Angola, viveu vários anos em Portugal antes de se fixar no Reino Unido, onde reside há cerca de onze anos.

A psicologia foi o seu primeiro território, mas a escrita acabou por se tornar uma extensão natural desse mesmo gesto de escuta. Entre consultas e conversas, percebeu que havia histórias por contar e assim nasceu, em 2022, As Negravilhosas, o seu primeiro livro infantil, publicado pela editora brasileira InVerso e ilustrado por Sampaio. A obra tornou-se uma referência entre leitores lusófonos pela forma como celebra a diversidade e a representatividade negra na literatura para crianças. “A psicologia ensinou-me que não preciso de seguir um padrão. Posso ser eu e continuar a ser uma boa profissional”, afirma. “E a literatura veio mostrar-me que podia levar essa mensagem a mais pessoas.”

As publicações seguintes reforçam essa ponte entre psicologia e literatura, ampliando a reflexão sobre afetos, masculinidades e relações familiares. Em 2024, voltou a apresentar-se em público na Primeira Feira Literária de Língua Portuguesa em Londres, onde divulgou também dois novos títulos - Quando eu olho para mim, eu vejo a ti e Se o meu silêncio falasse - obras que aprofundam a dimensão introspectiva do seu trabalho.

“Se amanhã deixasse de fazer a Mesa, ficava feliz. Fiz doze edições. Fiz o que tinha de fazer”

Selma Pires

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Na escrita, tem como maior preocupação tornar acessível o que tantas vezes se apresenta como complexo. Evita o vocabulário técnico e privilegia uma linguagem que qualquer pessoa possa compreender “porque é isso que importa”. “Penso sempre se as minhas tias ou a minha mãe vão entender o que quero dizer.” A escolha, que diz ser deliberada, é uma posição ética que atravessa o que faz, tanto nos livros como nas redes, onde o discurso sobre autoestima e saúde mental se mistura com o quotidiano.

Entre a psicóloga, a escritora e a organizadora de eventos, há um caminho que não se fez sem aquilo a que chama “dores de crescimento”. Se a escrita lhe apresentou novas possibilidades, a psicologia relembrou a necessidade de entender o seu propósito e, consequentemente, quem deve fazer parte dele. “A parte mais difícil é o luto das amizades”, confessa. “À medida que crescemos, nem todos seguem connosco.” Durante o percurso, aprendeu que crescer implica desapego, e que liderar exige reconhecer que “pedir ajuda é também um ato de força.” A mudança de postura, diz, foi decisiva para manter o projeto vivo. “Eu cuido das pessoas, mas também preciso que cuidem de mim. Quanto mais ajuda peço, mais cresço e crescemos juntas.”

Fora da esfera profissional, tem na maternidade o centro silencioso de tudo o que faz. É por ela que mede o tempo e organiza prioridades, e é nela que assenta o sentido do “caminho com dignidade” que pretende deixar como inspiração às filhas. “Se amanhã deixasse de fazer a Mesa, ficava feliz. Fiz doze edições. Fiz o que tinha de fazer.”

Hoje, fala do futuro com a serenidade de quem encontrou a própria medida. “Não quero estar em todas as mesas nem em todas as fotos. Quero sentar-me apenas onde me vejo. Quero inspirar as pessoas a cuidarem de si, a rirem mais, a escreverem livros, a olharem-se ao espelho e gostarem do que veem.” E quando se fala de legado, responde sem hesitar que “o legado já está a acontecer. Está nas minhas filhas, nas minhas irmãs, nas mulheres que me escrevem. Está em cada pessoa que aprendeu a não desistir.”

Do primeiro “bom dia, poderosa” aos encontros que hoje reúnem dezenas de mulheres, Selma Pires construiu um espaço onde a escuta se tornou uma forma de poder e é talvez nesse gesto contínuo, entre o cuidar e o ouvir, que reside a verdadeira força da Mesa das Poderosas: não na ambição de mudar o mundo de uma só vez, mas na persistência em lembrar, a cada encontro, que a transformação começa no modo como aprendemos a escutar os outros.

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