“A arte existe para despertar”, o olhar de Naia Sousa e a estreia no MIA 2025

November 6, 2025
naia sousa mia 2025 entrevista
Naia Sousa | ©_.inmyeyes

Partilhar

Há artistas que pintam o mundo como o veem e há outros que o recriam para que possamos senti-lo de novo. Naia Sousa pertence à segunda categoria. A sua arte nasce da urgência de transformar o indizível em cor e gesto. “A arte é como eu expresso o que está na minha mente quando as palavras falham”, costuma dizer, e é nesse silêncio colorido que a artista moçambicana, de 23 anos, tem vindo a construir uma linguagem própria, onde o semi-realismo e o abstracionismo se encontram para explorar o feminino, a memória e a metamorfose.

É na 4.ª edição do Mês da Identidade Africana (MIA), que decorre de 5 a 15 de novembro, na Casa do Comum, em Lisboa, que Naia dá o primeiro passo no circuito expositivo, apresentando-se na mostra Ecos da Memória. A exposição reúne artistas de diferentes origens e linguagens, entre os quais Ricardo Parker, Sai Rodrigues e Gigi Origo, num diálogo visual sobre herança, identidade e pertença. Na exposição, a criadora convida o público a mergulhar num território sensível, onde o passado e o presente se entrelaçam através da arte. O título traduz o cerne da sua investigação artística. “Fala das vozes que vieram antes de nós, das lutas, dos sonhos e do que fazemos com tudo isso. A memória é uma ponte, não uma âncora”, descreve, sublinhando a importância de olhar para a história não como peso, mas como caminho de transformação.

Nesta entrevista, Naia leva-nos numa viagem pelo tempo, dividida entre passado, presente e futuro, onde se rememora a génese de tudo, as perspetivas e as ideias que a guiam nesta jornada, na qual, a cada obra, parece questionar: o que é real e o que é sentido? O que é memória e o que é criação?

PUBLICIDADE

MIA MIA 2025

"A memória é uma ponte, não uma âncora”

Naia Sousa

naia sousa mia 2025 entrevista
naia sousa mia 2025 entrevista

Nascida em Maputo, em 2002, Shanaia João de Sousa, o nome por detrás de da artista, descobriu o desenho antes mesmo de saber nomeá-lo. Cresceu entre folhas e lápis, fascinada pelo poder de transformar linhas em mundos e recorda-se das paredes de casa como o primeiro espaço de experimentação. “Desde criança que desenhar era o meu modo de estar. Rabiscava bonecas, rostos, sonhos.” Entre cadernos e pincéis, Naia lembra-se que “andava sempre com desenhos na pasta para mostrar aos amigos”. 

O talento transformou-se em vocação quando começou a aceitar pequenas encomendas e descobriu no acrílico a sua principal forma de expressão. Atualmente, vive no norte do país, onde estuda Economia na Universidade do Porto. A escolha, aparentemente distante da arte, representa aquilo a que a artista chama de equilíbrio: “A arte é o meu coração, mas o curso dá-me estrutura”, confidencia. A mudança de país trouxe-lhe a consciência do olhar estrangeiro e a oportunidade de compreender o seu trabalho a partir de outra geografia. “Moçambique é a minha raiz, Portugal é o meu espelho”, afirma. Hoje, afirma com esperança que o ambiente artístico moçambicano está em expansão e que viver em Portugal lhe mostrou que há espaço para o trabalho de cada artista ser valorizado, acrescentando que acredita ser possível o mesmo no seu país.

No campo da criação, as suas obras representam a procura pelo equilíbrio entre o visível e o invisível, combinando semi-realismo, que lhe dá estrutura, e abstracionismo, que lhe oferece liberdade: “O que um não consegue dizer com formas, o outro expressa em emoção”, explica. O processo criativo é intuitivo e múltiplo, com ideias que surgem de conversas, sonhos ou pequenas epifanias do quotidiano: “Às vezes salto etapas e passo logo da ideia para o desenho, mesmo que no final fique só no caderno”, admite, sempre guiada pela intenção emocional que orienta cada gesto.

As personagens habitam um universo cósmico em tons de roxo e azul, onde mistério e introspeção coexistem, simbolizando renascimento, sabedoria e força espiritual, enquanto o feminino se manifesta como energia em constante metamorfose. A artista transita entre pintura tradicional e arte digital, que considera complementares. “A fusão entre o digital e o manual permite-me aproximar-me mais da imagem que tenho na mente. Uma ajuda a outra a existir.” A tecnologia funciona como extensão da sensibilidade humana, refletindo a sua visão híbrida e múltipla do mundo.

“A fusão entre o digital e o manual permite-me aproximar-me mais da imagem que tenho na mente. Uma ajuda a outra a existir”

Naia Sousa

naia sousa mia 2025 entrevista

Na exposição Ecos da Memória, a artista visual apresenta cinco obras que abordam temas como herança, resistência e transformação. A peça central, Karingana ua Karingana (Era uma vez), é uma celebração da identidade e da história coletiva africana. Outras obras, como Arquitetura Utópica e Sabedoria é… I e Sabedoria… é II, exploram desafios estruturais pós-independência e provérbios africanos ligados à comunidade, enquanto Raízes presta homenagem a Malangatana, um farol de identidade e resistência moçambicana.

Para Naia, participar nesta exposição é a concretização de um sonho há muito acalentado. Recorda-se de ter visitado, no ano anterior, a exposição Caleidoscópio e de ter imaginado o seu trabalho num espaço como aquele. Quando o convite para o MIA chegou, sentiu que o universo lhe respondia, num gesto silencioso de confirmação e destino. “No ano passado visitei a exposição Caleidoscópio e pensei que adoraria ver o meu trabalho num espaço assim. Quando o convite para o MIA chegou, senti que o universo estava a responder”, recorda e acrescenta que o  MIA é um lugar de afirmação e representação, onde os artistas afrodescendentes podem mostrar quem são e o que têm para dizer. “Quero que o público se sinta visto, que se reconheça, que concorde ou discorde, mas que sinta. A arte existe para despertar, nunca para adormecer.”

Entre os seus próximos objetivos estão a realização de exposições individuais e a exploração de novos meios de expressão, que vão da animação à videografia. “Sonho em fazer uma curta-metragem em animação. Quero continuar a cruzar linguagens. Acredito que quem experimenta vários ofícios acaba por criar algo novo”, afirma.

Com uma visão voltada para o futuro, a artista encerra a conversa com uma mensagem de força e encorajamento às novas gerações de artistas africanos, onde evidencia que o caminho da criação é feito de coragem e autenticidade. “Não esperem validação. Não há idade, tema ou fórmula certa para ser artista. Se a arte vive em vocês, então é o vosso caminho. Tomem posse dela e contem as vossas histórias”, conclui.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.

bantumen.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile