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Com um bilhete só de ida na cintura para a América Latina e um sonho idealista de que o Rio de Janeiro poderia vir a ser o meu novo posto de NIF ou, neste caso, CPF, decidi entregar-me para além da etiqueta de turista. A intenção era viver de dentro, sem filtro, e mergulhar na cultura brasileira durante dois meses para testar se aquilo que até então era feito de desejo, afinidade e sentimento de pertença poderia, de fato, ganhar corpo e tornar-se algo concreto e decisivo.
De São Paulo a Salvador, de Itacaré ao Rio, estes dois meses foram uma imersão cultural intensa que me abriram os olhos para a imensidão, a grandeza e a autenticidade do Brasil. O fascínio começou no Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e com as vastas plantações de cacau, multiplicando-se na gastronomia, na música, na fé, e sobretudo na hospitalidade, que jamais se fez escassa ao longo das viagens pelos diferentes estados.
Mas foi dentro dessa mesma hospitalidade, sempre calorosa e espontânea, que surgiu também um outro tipo de encontro: o da curiosidade. Muitas vezes, ao ouvirem o meu sotaque e o das minhas amigas, os brasileiros enchiam-nos com perguntas sobre a nossa origem. E foi nesse momento, ao tentar situar-me como guineense e africana de um país de língua portuguesa, que percebi o quanto nós, dos chamados PALOPs, ainda permanecemos invisíveis no imaginário social e, sobretudo, no sistema de educação brasileiro.
“90% dos brasileiros com quem interagi não fazia a mínima ideia de que, para além de Angola, existem outros países africanos que igualmente partilham a língua portuguesa”
Jamila Pereira
Começando com “Você é de Angola?” e terminando em “Que sotaque gostoso. Isso aqui é que é português de Portugal!”, o meu cérebro foi imediatamente inundado por lembretes de que existem lacunas profundas numa conexão que eu sempre supus consolidada, um laço além do trauma, entre nações outrora colonizadas que compartilham história, sangue, cultura e, acima de tudo, uma língua. Mas a realidade mostrou-se bem diferente daquilo que eu imaginava.
Essas lacunas não se limitam ao imaginário social, mas estão também enraizadas no próprio nível histórico. Apesar de todos termos vivido sob a mesma potência colonizadora, a verdade é que cerca de 90% dos brasileiros com quem interagi não fazia a mínima ideia de que, para além de Angola, existem outros países africanos que igualmente partilham a língua portuguesa. Mais ainda, o enaltecimento quase automático do sotaque europeu, visto como “o verdadeiro português”, expõe um mecanismo de subalternização do português falado no Brasil, reduzido muitas vezes a uma variação menor, quando na realidade é apenas uma manifestação legítima e rica da mesma língua.
Esse posicionamento ecoa os desígnios coloniais de assimilação e de produção de alteridades, isto é, da construção sistemática de uma hierarquia entre culturas e identidades das antigas colónias. No Brasil, essa herança manifesta-se tanto na idealização do português de Portugal como norma de prestígio, quanto na invisibilização quase completa dos países africanos de língua oficial portuguesa. O que parece ser apenas uma “curiosidade sobre sotaques” revela, na verdade, a permanência de estruturas coloniais dentro do tecido social e educacional brasileiro.
Apesar de todos os pensamentos e sentimentos que me atravessaram, a verdade é que duas realidades podem coexistir. É possível reconhecer a mágoa e a amargura que por vezes se moldaram dentro de mim, como a minha amiga Karen me explicou, ao mesmo tempo que compreendo que os laços afetivos entre povos são sempre complexos e muitas vezes contraditórios.
“Para mim, a língua era um elemento de conexão suficiente. Acreditava que, por si só, teria o poder de transcender fronteiras e cimentar um sentido de pertença partilhado”
Jamilia Pereira
Desde pequena que a cultura brasileira faz parte do meu quotidiano. Através das amizades, do desporto, da música, das telenovelas e até das expressões do dia a dia, fui-me habituando a ver o Brasil como uma presença constante, quase familiar. Estas referências não estavam apenas no meu imaginário individual, mas também no seio da minha comunidade, circulavam nas casas, nas conversas, nos encontros. E eu sei que não exagero ao dizer que, para muitos jovens dos PALOP, o Brasil sempre foi, e continua a ser, o país dos sonhos, uma extensão natural das nossas próprias raízes.
Durante muito tempo nunca questionei essa afinidade. Nunca me ocorreu que ela pudesse ser, em parte, uma falácia, uma relação construída sobretudo de nós para eles, e não necessariamente correspondida no mesmo grau ou intensidade. Para mim, a língua era um elemento de conexão suficiente. Acreditava que, por si só, teria o poder de transcender fronteiras, encurtar distâncias e cimentar um sentido de pertença partilhado.
No entanto, estes dois meses no Brasil fizeram-me repensar esse pressuposto. Percebi que o amor e a ligação que nós, guineenses e outros povos dos PALOP, sentimos pelo Brasil não se refletem da mesma forma no sentido inverso. Ao contrário, esse afeto parece ser muitas vezes transferido para outra referência: a América do Norte. No imaginário brasileiro, a procura da ancestralidade e do reencontro com uma terra distante parece estar mais conectada a narrativas afro-americanas do que propriamente a África lusófona.
Assim deparei-me com a ironia que mais me inquieta: no fundo, tanto nós como os brasileiros partilhamos uma mesma procura, a da pertença, a do regresso simbólico a um espaço de origem. Mas enquanto nós olhamos para o Brasil como uma continuação de nós mesmos, o Brasil parece olhar para os Estados Unidos como a sua ponte para África. É neste desfasamento que reside a fratura, e é dele que emergem as perguntas que me têm acompanhado desde então.
“Enquanto nós olhamos para o Brasil como uma continuação de nós mesmos, o Brasil parece olhar para os Estados Unidos como a sua ponte para África”
Jamilia Pereira
E foi nesta miríade de ideias e pensamentos que me vi a questionar: como se explica, então, o afrocentrismo e o pan-africanismo que tanto se enfatiza mundialmente como símbolos de identidade no Brasil? Apesar de o país abrigar a maior população afrodescendente fora do continente africano, e da paisagem cultural, social e económica do Brasil ter sido profundamente moldada pela presença e contribuição de afro-brasileiros, a distância entre a procura por uma ancestralidade e a consolidação de uma identidade coerente tocou-me em vários pontos sensíveis, porque simplesmente não coincidia.
As noções de África que me foram partilhadas eram, na sua maioria, limitadas e quase sempre apresentadas sob duas lentes extremas: ou romantizadas ao ponto de parecerem irreais, ou empobrecidas a ponto de reduzirem toda a complexidade a miséria e violência. Era ou Black Panther, com o seu exotismo futurista e inatingível, ou Beasts of No Nation, com a sua carga de brutalidade. Não havia meio-termo, não havia espaço para reconhecer a pluralidade de nações, culturas, línguas, realidades sociais e trajetórias históricas.
Esse descompasso deixou-me a sensação de que o afrocentrismo, embora amplamente celebrado, é muitas vezes performativo e aprisionado num enquadramento externo, um afrocentrismo que não atravessa as fronteiras do discurso americano e permanece ancorado em imagens de uma África mitológica, miserável ou subdesenvolvida. Um conceito que, no fundo, continua a ser moldado por lentes racistas e discriminatórias construídas pelo Ocidente.
E a verdade é que, sem acesso a fontes fiáveis, descolonizadas e sobretudo sem a disposição de expandir horizontes para além da bolha cultural imediata, o risco é que essa visão se perpetue: um continente reduzido a um único país, e um país reduzido a uma aldeia. Este ciclo não apenas mantém viva a ignorância, mas enfraquece também as próprias pontes que poderiam fortalecer a diáspora e reconstituir os laços reais entre Brasil e os PALOP.
Depois de todos estes encontros, inquietações e reflexões, ficou claro para mim que a língua portuguesa, embora capaz de criar pontos de contacto inesperados, não é por si só suficiente para garantir a construção de laços sólidos e recíprocos entre os povos que a partilham. Carrega consigo memórias coloniais, desigualdades históricas e representações enviesadas que ainda moldam a forma como nos vemos e, sobretudo, como não nos vemos uns aos outros.
O que aprendi ao longo destes meses no Brasil foi, acima de tudo, que o afeto e a admiração que os PALOP projetam para este país não encontram o mesmo eco de volta. Não por falta de afinidades culturais ou de experiências partilhadas, mas porque o Brasil, tal como tantas outras sociedades pós-coloniais, também está preso a um imaginário produzido pelo Ocidente, um imaginário que continua a simplificar, romantizar ou marginalizar África. E nesse processo, os países africanos de língua portuguesa tornam-se invisíveis, quase inexistentes.
Independentemente de tudo a coexistência de mágoa e esperança é possível. Reconhecer a fratura não significa desistir da ponte. Significa, isso sim, entender que o afrocentrismo não pode ser performativo ou oco, que a procura da ancestralidade tem de ser acompanhada de conhecimento e de uma abertura genuína ao outro. Significa também aceitar que não basta citar nomes, exaltar símbolos ou repetir discursos, é necessário um compromisso ativo em desfazer hierarquias coloniais e em reescrever as narrativas que herdámos.
Como comunidade lusófona, temos uma responsabilidade que é simultaneamente um desafio e uma oportunidade: resgatar a língua da sombra da colonização e devolvê-la ao lugar de encontro entre iguais. Isso passa por incluir os PALOP nas salas de aula brasileiras, nos livros, nas televisões e, acima de tudo, nas conversas do dia a dia. Só assim poderemos transformar o que hoje é fratura em reciprocidade, e o que hoje é invisibilidade em presença viva e incontornável.
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