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Paulo Flores tinha apenas 16 anos quando gravou o seu primeiro disco de originais. Filho de Carlos Alberto Flores, cresceu rodeado por música e vozes que atravessavam o Atlântico, ouvindo ritmos que fundiam tradição africana, influência lusófona e diáspora negra. A sua ligação à música tornou-se inseparável da construção de identidade cultural e afetiva, muito antes de subir aos grandes palcos ou de se tornar uma das vozes mais reconhecíveis da música de intervenção e do semba moderno. Nascido em Luanda e criado entre a capital angolana e Lisboa, cresceu num ambiente onde a música era presença constante, moldada pelas rádios sempre ligadas, pelos discos que o pai trazia para casa e pelas visitas frequentes de músicos que por ali passavam. Foi nesse ambiente informal e fértil que, ainda em criança, começou a cantar por cima dos discos, um gesto aparentemente banal que anteciparia uma trajetória artística profundamente enraizada na memória colectiva do seu país.
“Vamos dizer que isso não vale”, comenta, entre risos, sobre essas primeiras experiências caseiras. Mas tudo começou a ganhar forma quando, por volta de 1987, formou um grupo e começou a ensaiar com regularidade. No ano seguinte, aos 16, gravaria o primeiro disco. “Acho que foi aí que a coisa ficou mais séria”, lembra. Ainda assim, não o movia a ambição de ser reconhecido, nem tão-pouco o desejo de palco. “Nunca pensei em ser famoso. Era mesmo uma forma de desabafar.” O que havia era uma urgência: a necessidade de transformar em canções aquilo que lhe ia por dentro e que, de outra forma, não conseguia verbalizar.
A Guerra Civil, iniciada após a independência, prolongava-se sem tréguas e muitos tentavam escapar à dor refugiando-se no silêncio. Flores fez precisamente o oposto “para não esquecer, para não se perder, para não deixarmos de ser quem somos e para nos relembrarmos de que tínhamos muito em que acreditar e muito por conquistar.” Ao longo de 37 anos de carreira, a sua música transformou-se numa espécie de espelho e consolo coletivo, ao mesmo tempo que tentava abrir caminhos. O impacto que viria a ter só se tornou claro mais tarde. Nos primeiros tempos, a criação era frenética, quase irrefletida, marcada por uma produção anual constante - “os primeiros cinco ou seis discos foram todos os anos” -, numa fase em que, mais do que qualquer consciência política, havia sobretudo instinto. “Tinha muita dificuldade em explicar o que sentia e era através da música que eu conseguia isso. (…) Era tudo muito rápido. Parece que eu tinha tanta coisa, tanta palavra para dizer e para me explicar a mim próprio.” Nunca pensou no modo como a sua música seria recebida, apenas escrevia, porque sentia que precisava de fazê-lo.
As letras, no entanto, deixavam claro um olhar crítico e uma inquietação social que não passavam despercebidas. Aos 17 anos, escreveu uma das suas canções mais emblemáticas, O Povo, sobre os contrastes da Luanda de então: “se mais velho está contente, diz que Luanda está boa, está melhor do que Lisboa. Diz que é mesmo independente porque choras pior, pior. Se as promessas reinam em Luanda, se já passou dipanda, se o povo é que manda, por que choras?” Hoje reconhece o peso político dessas palavras, mas à época limitou-se a canalizar aquilo que o perturbava. “Via crianças de rua. Esses contrastes todos mexiam comigo. Então lembro-me dos slogans, e eu acabei por pôr o slogan dentro da própria música, mas sem ter essa noção de que era assim tão grave.” Recorda até que alguns o advertiram de que a música poderia ser censurada. “Mas nunca liguei muito. E sinceramente, acho que tive muita sorte. A música acabou por falar por si própria.”
Também a relação com a tradição e com a memória coletiva se revelou, desde cedo, uma força estruturante no seu percurso. O semba, género musical que durante o período colonial foi reprimido e vigiado, tornou-se um dos pilares do seu trabalho artístico. “Às vezes, nos musseques, dançava-se, mas muitas vezes era até disfarçado. As próprias letras tinham mensagens. Havia censores que sabiam kimbundu e explicavam o que se estava a dizer.” Contra as recomendações de quem lhe dizia que o semba não teria audiência, gravou Canta Meu Semba em 2003. “Lembro-me do que as minhas avós ouviam em casa e fui à procura dessa linguagem que hoje em dia, se calhar, é a minha preferida.” Antes disso, já tinha experimentado a kizomba com forte influência do zouk, numa tentativa de criar impacto imediato, “nós fizemos muito isso também para ter impacto no início e aquilo acabou por resultar”, mas o semba acabou por se tornar a sua identidade artística mais sólida, num gesto de reencontro com a herança familiar e de resistência cultural.
Reconhecido como uma das figuras mais influentes da música angolana contemporânea, Paulo Flores foi distinguido com o Prémio Nacional de Cultura e Artes e tornou-se, ao longo das décadas, presença constante em festivais internacionais e em palcos de comunidades lusófonas espalhadas pelo mundo, sendo frequentemente apontado como embaixador cultural não oficial do país. Colaborou com artistas como Péricles, Yuri da Cunha, Manecas Costa, Força Suprema e, mais recentemente, Prodígio, em 2022, numa aliança entre tradição e contemporaneidade que reforça a sua relevância transversal.
Chegados a 2025, ano em que Angola assinala o cinquentenário da independência, Flores mantém o olhar atento sobre o país que nunca deixou de cantar. Vê melhorias em algumas áreas, especialmente na forma como as instituições começam a responder com maior profissionalismo, mas sublinha que há ainda um longo caminho a percorrer. Depois de uma digressão pelo sul de Angola, regressou com a sensação de que, apesar de tudo, a generosidade e a capacidade de reinvenção continuam a ser traços fundadores do povo angolano. “A dimensão humana, a capacidade das pessoas de se inventarem, de continuarem a ser generosas, isso é o que me deixa ainda inspirado e esperançoso.” Entre os jovens, sente também um novo tipo de energia. “Acho que agora estamos com uma sociedade civil mais ativa, que sabe melhor o seu posicionamento.” No entanto, alerta para o défice estrutural de educação, que compromete o aprofundamento do debate público. “O facto de não termos uma sociedade educada faz com que muitas vezes as coisas extrapolem e se perca o conteúdo que era necessário focar mais.” Mesmo assim, vê sinais positivos e acredita que o país tem todas as condições para seguir em frente, desde que invista com seriedade na formação das suas gerações mais novas.
A atenção às novas gerações encontra eco nas transformações sociais que observa enquanto músico engajado, especialmente na colaboração com o rapper Prodígio, que se materializou em A Bênção e a Maldição, disco concebido em poucos dias, orientado por uma urgência partilhada e pelo desejo de dar voz ao que permanece silenciado. “Estava até a sentir-me meio doente e lembro-me que tínhamos que gravar alguma coisa mesmo juntos. Este disco foi quase um jorro, mais uma vez, de inspiração sem pensar muito. Gravámos em três ou quatro dias. Chegávamos ao estúdio e dizíamos: espera aí, eu também quero dizer alguma coisa sobre esse tema.” O álbum é intencionalmente cru e violento, e algumas músicas continuam difíceis de interpretar ao vivo - “aconteceu-nos cantar A Fome num show e depois disso o concerto nunca mais levantar. As pessoas ficaram presas na densidade daquela verdade.” Ainda assim, Flores defende que a honestidade criativa supera qualquer desconforto e admite “só o facto de termos feito honestamente, sem pensar muito e com o coração, já justifica a obra.”
Hoje, divide o palco com o filho, e também músico, Kiari, num gesto que carrega um simbolismo íntimo. “É um privilégio. Tive esse com o meu pai, agora tenho com o meu filho.” Entre eles, músicos como Manecas Costa, que o acompanham há anos, ajudam a compor uma relação de afetos e continuidade.
Convidado a olhar para trás, para o jovem de 16 anos que começou sem certezas, não hesita em agradecer “porque no fundo foi aquele começo tão intuitivo que me permite estar aqui hoje, a continuar a criar, a cantar e a ter alguma credibilidade.” E sobre o reconhecimento, diz que nunca o deixou moldar a sua identidade. “Orgulha, mas não pesa. Eu sou aquilo que me sobra depois dos aplausos. Então não tem como. Eu sou sempre a mesma pessoa.”
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