Sara Tavares homenageada em Loulé com espetáculo idealizado por Nuno Guerreiro

“Diz-me Coisas Bunitas… Para Sara Tavares” foi o título do espetáculo que encerrou a 21.ª edição do Festival MED, em Loulé, no passado dia 29 de junho. Inserida no âmbito do Open Day, a homenagem celebrou a vida e a obra da cantora e compositora luso-cabo-verdiana que, desde os anos 90, deixou uma marca incontornável na música portuguesa contemporânea, cruzando línguas, espiritualidade e uma estética singular.

O concerto, que teve lugar no Palco Cerca, revestiu-se de um duplo simbolismo. Não só evocou o legado de Sara Tavares, falecida em novembro de 2023, como também deu corpo à vontade de Nuno Guerreiro, cantor natural de Loulé, que idealizou este tributo e que viria a falecer inesperadamente em abril deste ano, vítima de complicações de saúde. A Câmara Municipal de Loulé optou por manter o espetáculo nos moldes originalmente definidos por Nuno, como forma de honrar a amizade que o unia a Sara e de prestar também homenagem ao artista louletano, figura de referência na comunidade local.

Conhecido por integrar os Ala dos Namorados e por uma carreira a solo marcada por rigor técnico e sensibilidade artística, Nuno Guerreiro mantinha com Sara Tavares uma relação de longa data, alicerçada na admiração mútua e na colaboração artística - juntos deram voz a temas como “Solta-se o Beijo”. À sua cidade natal, Nuno legou não apenas a voz distinta, mas também um sentido de pertença que o levou a querer celebrar a amiga no palco maior da cultura louletana.

O espetáculo reuniu a Orquestra Filarmónica Artistas de Minerva - com quem Nuno iria atuar - os Shout, os Mau Feitio (banda que o acompanhava frequentemente) e as cantoras Nancy Vieira e Ligía Pereira. A escolha de Cabo Verde como país-tema desta edição do MED reforçou ainda mais o enquadramento afetivo e cultural do concerto.

À BANTUMEN, a cantora Selma Uamusse, que também atuou no festival, partilhou um testemunho íntimo sobre a relação que mantinha com Sara Tavares, sublinhando a presença ética da artista e a influência que teve no seu percurso. “A Sara não era apenas uma amiga. Era e continua a ser uma referência musical, espiritual e humana”, afirmou. Recordou os momentos de vizinhança, a cumplicidade quotidiana e a disponibilidade constante de Sara para ouvir e aconselhar, mesmo nos momentos mais delicados. “Ela era daquelas pessoas a quem eu podia ligar a dizer: ‘Convidaram-me para isto e não sei se me sinto confortável’. E ela respondia: ‘Tu não tens de fazer nada que não esteja alinhado com a tua verdade’. Isso marcou-me.”

Selma falou ainda da importância da compositora enquanto pioneira: uma das primeiras mulheres negras a afirmar-se como cantautora em Portugal, com um percurso coerente nas escolhas, sem necessidade de levantar bandeiras explícitas. “Aquilo que ela era falava por si”, frisou. Para a cantora moçambicana, Sara exercia diariamente um gesto de humildade. “Ela praticava o deixar de ser ego para ser presença. E isso fez dela um ser humano imenso.”

A cantora acrescentou que a influência de Sara se prolonga para lá da sua música, atravessando o modo como tocava vidas e inspirava uma existência mais consciente e comunitária. “Ela merece muito mais do que tributos esporádicos. Merece escolas, auditórios, ruas com o seu nome. Porque, mais do que parecer ser, ela era.”

O Festival MED, que há mais de duas décadas se afirma como um espaço de cruzamento de sonoridades mediterrânicas e de culturas lusófonas, encerrou assim a sua edição de 2025 com um gesto de justiça poética. “Diz-me Coisas Bunitas… Para Sara Tavares” tornou-se não apenas uma celebração da artista que renovou a música de fusão em Portugal, mas também uma homenagem a Nuno Guerreiro, cuja partida precoce transformou o momento em legado partilhado.